Autora: Terezinha Mendonça, Psicanalista
Fidelidade e monogamia: Vocação ou renúncia?
Amar alguém é restringir o potencial de sua própria personalidade,
mas não amar ninguém é transformar-se em ninguém.
Não posso me tornar eu mesmo a não ser pagando o preço do amor
que me mutila
Guitta Pasternak, entrevista a Boris
Cyrulnik[1]
A degradação da Lei se manifesta, por vezes, através de seu avesso,
criando, no momento mesmo em que se corrompe, a necessidade de interdição do
desejo de transgressão. O tema em torno do qual estamos aqui hoje reunidos,
refere-se ao pressuposto contemporâneo que nos eximiria da exigência de
fidelidade como premissa do pacto social.
Para abordarmos este provocativo tema, Não desejar a mulher do
próximo/Não ser
fiel e não esperar a fidelidade, vou partir de uma questão mais ampla, na qual estão implicados o
Desejo e a Lei Esta questão, que norteará minha reflexão nesta mesa de hoje,
pode ser assim enunciada: A necessidade da Lei Moral pressupõe a necessidade
de regulação do desejo? Ou é a formulação da Lei que institui o desejo como
desejo de transgressão?
São Paulo, em carta aos Romanos, sinaliza o papel da Lei na
instituição do pecado: eu não conheci o pecado senão através da Lei, pois eu
não teria conhecido a concupiscência se a Lei não tivesse dito: Não cobiçarás.( Papel da lei )
Enunciado
de outra forma, por que o desejo precisa ser regulado? Esta necessidade da Lei
pressupõe a idéia de uma inclinação para o mal?Por fim, no que se refere aos
dias de hoje, podemos verdadeiramente supor que haja uma degradação da Lei
Moral, ou trata-se de identificarmos os novos códigos através dos quais a
moralidade se veicula?
Precisaremos passar em revista, ainda que brevemente, alguns pontos
indispensáveis a esta discussão: do lado da necessidade da Lei Moral, estão as
idéias de culpa, pecado, castigo e os custos impostos aos indivíduos pelas exigências
civilizatórias. No caso de que possamos vir a prescindir da Lei, isto se dará,
por uma transformação dos impulsos ou pelo resgate e exercício de uma vocação
natural? Não podemos deixar também de ter em mente as diferenças culturais que
selam tanto o pacto de fidelidade quanto a idéia de traição a esta aliança
firmada.
Antes de mais nada, é preciso fazer uma distinção entre fidelidade
conjugal, monogamia e poligamia. A legislação que regula o matrimônio em nossa
cultura ocidental, prevê o casamento como instituição monogâmica e as relações
extra conjugais configuram infidelidade, podendo ser enquadradas como crime de
adultério, sujeito às penalidades prescritas pela legislação vigente. Nas
cultura que prevêem o casamento como instituição poligâmica, a infidelidade
também é caracterizada por relações extra conjugais e embora várias esposas
possam ser tomadas por um único homem, elas precisam ser instituídas como tais
e isto se realiza a partir de um novo pacto, firmado a cada nova aliança
estabelecida. O que varia aqui é a natureza do pacto social, mono ou
poligâmico, mas nenhum destes modos de estruturação social e familiar abrem mão
da premissa da fidelidade e da condenação moral pela traição do pacto firmado.
Para efeito de nosso debate, estarei referida à cultura ocidental e,
por este motivo, usarei monogamia e fidelidade conjugal como sinônimos.
A exigência de
fidelidade conjugal enunciada pelo mandamento não cometerás adultério, bem como a possibilidade do cumprimento desta lei no
exercício da prática cotidiana decorrem:
1.De uma construção cultural que envolve os custos da renúncia
pulsional necessária ao processo civilizatório e que tem como resultante o Mal
Estar na Civilização
proposto por Freud?
2. De uma transformação da libido ao longo do processo civilizatório,
de tal maneira que o Desejo e a Lei possam coincidir na forma de uma autonomia
da vontade, dispensando assim a idéia da necessidade do sacrifício pulsional?
3. Que a coincidência entre Desejo e Lei seja decorrente de uma
vocação natural inscrita no coração dos Homens ( Sto Agostinho), observada
desde antes da promulgação das Leis, por todos os homens justos( Sto Irineu)?
Se voltarmos nosso olhar para história bíblica da enunciação do Decálogo,
veremos que ela se dá em diferentes momentos. No primeiro deles, o próprio Deus
teria promulgado estes preceitos oralmente, em voz alta, do alto do Sinai.(
Exod. XX 1-17) No segundo momento, o decálogo teria sido escrito pelo dedo de
Deus, em duas tábuas lavradas por Ele mesmo e entregues a Moisés durante sua
permanência de 40 dias e 40 noites na montanha ( Exod. XXIV 12 e XXXI,18). Estes escritos atestam a vontade
formal de Deus.
Moisés trazia as tábuas em suas mãos quando encontra seu povo
adorando a imagem de ouro( Êxodo XXXII, 15,16,19), acontecimento que motiva o
rompimento da Aliança simbolizado pela quebra das tábuas. Retornando ao Sinai,
Moisés ora pelo perdão para seu povo e através de sua prece, Deus consente em
renovar a aliança violada, ordenando-o a lavrar duas novas tábuas iguais às
anteriores e escrever sobre elas, as leis da aliança renovada.( Exod. XXXIV
27-29).
Segundo o Dictionaire Theologique Catholique, podemos identificar
três principais classificações historicamente relevantes para os preceitos do
Decálogo: A do Talmud, a de Philon e a Agostiniana. A tradição cristã
compreende dois períodos, antes e depois de Santo Agostinho e é com ele, que
será dada ênfase ao ensino do decálogo. No período anterior a ele, encontram-se
poucas alusões à uma descrição completa dos dez preceitos e os ensaios nos
quais elas se encontram são inspirados
sobretudo em Philon.
Ainda que tenham sofrido algumas alterações, as diferentes versões do
decálogo preservaram basicamente o mesmo conteúdo. As diferenças observadas, são
atribuídas aos retoques feitos por aqueles que reescreviam os textos, cada um
deles mais identificados com uma ou outra forma de enunciação do decálogo,
eloista ou deuteronomista.
Em relação ao preceito que aqui nos interessa, não desejar a mulher do próximo, observam-se algumas divergências no que se refere
à proibição da cobiça e à situação da mulher como objeto de desejo. Tanto ela
pode fazer parte da casa, situando-se como mais um dos bens entre os objetos e
animais ou ela pode ocupar um lugar distinto.
Uma outra prescrição, muito próxima desta, não cometerás
adultério, nos remete
à uma pergunta fundamental: há identidade moral entre desejo e ato?
No Evangelho de Jesus Cristo há uma completa identidade moral entre
desejo e ato. Por este motivo, o enunciado de sua Lei é considerado superior à
de Moisés, que concede o benefício do divórcio por levar em conta a dureza
do coração dos homens.
Para o Novo Testamento, uma vez que tenha sido contraído matrimônio, homem e
mulher deverão manter-se unidos até que a morte os separe. Em relação à
interdição do adultério, Jesus nos diz que todo aquele que olha para uma
mulher com desejo libidinoso, já cometeu adultério ( Mateus, 28). Segundo o Dictionaire Theologique
Catholique, a Lei de Moisés reprova somente o adultério, enquanto Jesus condena
todo desejo e todo olhar acompanhado de desejo ou excitação. Segundo S.
Gregório, enquanto a Lei antiga interditava somente a realização do pecado, a
lei cristã interdita também a causa do pecado.
Jesus acrescenta que não veio para revogar a lei, mas para dar-lhe
pleno cumprimento. Assim, o amar ao próximo se transforma em amar aos seus
inimigos e o não matarás, em não encolerizar-se ou cometer desacatos, mas
antes, buscar uma atitude
conciliadora.Poderemos estar à altura do cumprimento desta Lei? Freud achava
que estas exigências civilizatórias resultavam em Mal Estar na Civilização, por
encontrarem-se muito além de nossas possibilidades. Neste caso, estaríamos
falando de um sacrifício pulsional.
Freud dizia que as pulsões em si não são nem boas nem más; são apenas
impulsos que buscam satisfação. O que vai conferir-lhes um juízo de valor é o
modo de inserção destes impulsos no contexto cultural e as possibilidades, a
eles atribuídas, de contribuição para a sobrevivência da espécie e da vida
comunitária.
Porém, Freud apostava na existência de um mal radical, anterior à
qualquer estruturação psíquica, que ele nomeou de Thanatus, força disruptiva,
que age no sentido contrário à Eros, pulsão de vida, força de coesão. No relato
Bíblico do Êxodo, encontramos a fala de Aarão, no momento disruptivo que marca
o rompimento da primeira aliança entre Homem e Deus: que não se acenda a
cólera do meu Senhor. Tu sabes quanto este povo é inclinado para o mal (Exod.
22 )
Em psicanálise, as pulsões são consideradas impulsos oriundos de uma
fonte somática, que buscam inscrever-se no universo psíquico e encontram
expressão através do desejo. O desejo, por sua vez, se dá a conhecer através de
representações, constituídas de imagens e conteúdos ideativos que configuram as
fantasias.
A internalização da Lei vai promover a constituição do superego, que
põe fim às possibilidades do fazer escondido. Neste sentido, também o superego
faz uma identificação entre ação e desejo, pois basta que o ego se dirija à um
objeto interditado, para que a culpa oriunda da vigilância superegóica venha
desempenhar um lugar privilegiado na formação das neuroses. O problema de
uma Lei impossível de cumprir, é o montante de culpa que ela será capaz de
mobilizar.
Lacan irá formular uma
Ética para a psicanálise que identifica o Desejo ao Dever Kantiano. Age de
tal forma que tu possas querer que a máxima de sua vontade se transforme em
regra universal. Serve-se
da enunciação do imperativo para falar de um desejo livre, de uma autonomia da
vontade, livre de inclinações patológicas. Antígona é sua figura emblemática,
musa inspiradora desta formulação teórica.
Assim, se em Freud, a ação moral se dá por medo de perder o objeto
amoroso, em Lacan, a ação Ética está subscrita à tragicidade do desejo que
decorre do abandono do Homem pelos deuses. Entregue à si mesmo, capaz de
transformar seu desamparo em afirmação de seu desejo e produzir o não
submetimento, a ação ética promove a liberdade absoluta, no momento mesmo em
que identifica Desejo e Lei.
Aqui gostaria de destacar um ponto importante: segundo Sto Irineu,
Sto Agostinho e São Thomás, o decálogo é considerado um recobrimento de preceitos
naturais inscritos no
coração dos homens e observados por todos os justos antes da promulgação de
qualquer Lei e, na maior parte das vezes, comuns à maioria das alianças.
Expressos de maneira muito sintética, estas leis naturais se resumem a dois
princípios fundamentais: fazer o bem e evitar o mal. Assim, a revelação não
modifica a Lei Natural, apenas a confirma, estende e explicita, servindo como
guia para regular a vida moral. O decálogo, segundo S. Thomás, amplia a lei natural, detalhando-a em
alguns preceitos não tão intuitivos e que requerem os ensinamentos de
instruídos nas ciências morais. Tal parece ser o caso da interdição do
adultério. A esperança em que a lei moral e a lei natural se possam
confundir é apresentada como uma aposta cujo sucesso depende dos homens em
reunir aquilo que se encontra dividido.[2]
As formulações de Kant, em sua Fundamentação da metafísica dos
costumes, aproximam-se das de São Paulo, em suas cartas aos romanos: Quando
os gentios, não tendo Lei, fazem naturalmente o que é prescrito pela Lei, eles
não tendo Lei, para si mesmos são Lei. (Cartas de S. Paulo aos Romanos, Não obstante a
Lei.)
Se a moralidade em Freud resulta na neurose e é sustentada por ela,
em Lacan, desenvolve-se no interior do herói a partir da coincidência entre
Desejo e Lei. O herói, Lacan pondera em seu seminário sobre a Ética, pode
efetivar-se pela via do homem comum, mas convoca o sobre humano em nós ou,
podemos dizer parafraseando Nietzsche, o além homem em nós e a vontade santa no
dizer Kantiano.
Contudo, uma importante diferenciação merece ser sinalizada: a
obediência à Lei aparece, em Freud, como fruto de um permanente processo
civilizatório e o quantum pulsional que escapa à domesticação ressurge como
disposição à neurose ou à atividade sublimatória, mas não é pensado por ele,
como disposição ética; a identificação entre desejo e lei em Kant, apresenta-se
como remota possibilidade da razão, improvável mas não impossível; em Lacan, é
a insistência pulsional e a recusa de sua completa inscrição no circuito da
cultura, que impulsiona o sujeito a alçar um vôo para além do rochedo da
castração, inscrevendo seu desejo como desejo de vontade livre, abrindo-se para
o exercício da ética; São Thomás e
Santo Agostinho apóiam-se no pressuposto da beneficência como Lei natural
inscrita no coração dos homens, Lei e desejo unificados num momento inaugural,
mas as escrituras também apontam, como vimos, uma inclinação ao mal.
Aqui retomamos a questão da distância entre desejo e ato, pois o fato
de que possamos saber, mesmo a priori, o melhor caminho a trilhar, nem de longe
nos preserva de seguirmos o pior. Isto vale tanto para execução do bem quanto
para evitação do mal. Neste sentido, a conquista de alguma liberdade de
escolha, exigirá de nós, necessariamente, o processo e o trabalho de uma luta
interior.
Para que o cristão se liberte da lei, é necessário que ele enfrente sua
luta interior que, em
psicanálise chamaríamos de conflito, oriundo da divisão do sujeito: Realmente
não consigo entender o que faço… Com efeito, não faço o bem que eu quero, mas pratico o mal que
não quero (Carta aos
romanos, A luta interior ). Ora, se eu faço o que não quero, já não me reconheço na ação. Dependendo do ponto de vista
que nos oriente, este desconhecimento pode ser visto como fruto da alienação do
sujeito ou como ação do pecado que
o habita. Em psicanálise dizemos que há um outro que nos habita que é o outro
do inconsciente e não o pecado.
Tomando ainda o texto da carta aos romanos, na parte referida à luta
interior, vemos que a
questão do pecado é insistentemente abordada por Sto Agostinho como fruto da
carne: eu sei que o bem não mora em mim, isto é, na minha carne … percebo
outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e que me
acorrenta à lei do pecado que habita em meus membros…sou eu mesmo que, pela
razão sirvo à lei de Deus e pela carne à lei do pecado. Na sessão seguinte, a vida no
Espírito, Sto
Agostinho é categórico ao afirmar que o desejo da carne é inimigo de Deus.
O estatuto do corpo em psicanálise está longe de poder ser
identificado como fonte do pecado, mas, antes, a fonte somática das pulsões
que, concebida como conceito limítrofe entre o corpo e o psíquico, confere à
psicanálise um lugar privilegiado no pensamento transdisciplinar, instaurando
um campo de questionamentos que põe em cheque as rígidas fronteiras estabelecidas
pelo paradigma clássico entre corpo e espírito, natureza e cultura.
Entre a Lei e o desejo,
se alguma conciliação for possível, na psicanálise freudiana ela será sempre
produto de um equilíbrio instável e provisório, passível de perturbações que
não chegam a ser indesejáveis, mas, ao contrário, fruto de um movimento que
testemunha a presença da vida. Para uma leitura que aproxime a psicanálise e o
pensamento trágico, o conflito será sempre inextirpável e a tensão decorrente
daí, motor que movimenta a vida.
Na doutrina cristã, a promessa de conciliação se dá por obra da graça
e não por intervenção da Lei, uma vez que esta só faz revelar a falta. De
modo que, como pela desobediência de um só homem ( Adão), todos os homens se tornaram
pecadores, assim, pela obediência de um só (Jesus),
todos se tornarão justos. ( Romanos, 5) Alcançar a graça requer uma
profissão de fé e significa libertar-se da necessidade da Lei e da morte
atrelada ao pecado que vive na carne.
Enquanto a promessa não se cumpre e a fé nem sempre consegue ser
suficiente para transcender nossa condição humana, apesar dos esforços da
filosofia e dos cuidados da psicanálise, a questão da fidelidade, ou da
obediência à Lei segue sendo um problema para os mortais. Na maioria das vezes
não somos santos nem heróis e sustentamos com dificuldade a necessidade de
afirmação requerida pelo pensamento trágico, tendendo no mais das vezes à um
pensamento prenhe de evasivas, lamentações e ressentimentos.
Sabemos pela psicanálise que não somos senhores de nós mesmos e a
biologia vem colocando questões que cada vez mais parecem colocar em cheque
nossos anseios de livre arbítrio. A determinação biológica surge, por vezes,
como um atenuante para nossas im-possibilidades éticas e pode situar-se de
forma alternada entre a maldição e a salvação.
Henri Atlan, em seminários realizados no Rio de Janeiro e em S.
Paulo, no ano de 2001, chamou a atenção para os problemas derivados do enfoque
bioquímico quando utilizado para a compreensão dos comportamentos humanos,
dando como exemplo, os casos de violência. Na hipótese de que a causalidade dos
atos violentos pudesse ser
deslocada para a bioquímica do indivíduo, esta abordagem nos deixaria
seriamente embaraçados no momento de julgar um criminoso e responsabilizá-lo
por seus atos: ele deveria cumprir pena ou ser encaminhado para tratamento
médico? Seu espírito foi livre para arbitrar sobre seu ato ou ao contrário, ele
agiu por uma imposição biológica impossível de controlar?
Assim como a tendência para o mal, o gosto pelo bem pode ter sua
matriz carnal. Boris Cyrulnik, expert em etologia humana, entrevistado por
Guitta Pasternak, afirma as bases biológicas para o amor e os hormônios como
responsáveis pela fantasia. Varela, outro importante biólogo e conhecido
pensador das ciências da complexidade, assinala a existência de uma biologia do
amor e aponta para a presença de uma solidariedade instintiva na espécie
humana, o que nos remete à questão do princípio da beneficência, inscrito,
neste caso, não no espírito, mas nas cadeias do DNA.
Nas epístolas de São Paulo, podemos ler que o amor é a síntese da
Lei e os preceitos,
não matarás, não cometerás adultério,
não furtarás etc… se resumem
a uma sentença: amarás teu próximo como a ti mesmo. A caridade é a
plenitude da Lei e o amor aqui, inscreve-se como faculdade do espírito.
Onde
moram afinal, o pecado e a virtude? Localizar as virtudes do amor no espírito e
os seus pecados na carne, revela um pensamento dualista que as ciências da
complexidade e a psicanálise, como uma de suas expressões, vêm se esforçando
por transformar. Como observa John Stewart, a estratégia freqüentemente
utilizada para solucionar este dualismo, consiste em limitar-se à um monismo “do
espirito ou idealismo e um monismo do corpo ou materialismo ”[3]
sendo ambas, posições eliminacionistas em relação à outra. Stewart enfatiza o
caráter relacional envolvido na produção dos fenômenos, que não podem ter sua
fonte ou procedência em nenhuma localidade isolada e determinada, seja ela o
corpo, a mente ou o meio ambiente.
Para concluir e, a título de provocação, deixarei ainda algumas
questões para posteriores reflexões. Sabemos da existência de espécies animais
que adotam um padrão monogâmico e um pacto de fidelidade em suas estruturações
sociais e familiares. Isto poderia endossar a idéia da existência de uma
vocação monogâmica natural, pelo menos para algumas espécies, ou ainda para
alguns grupos dentro de uma mesma espécie?
Para
justificar a prática monogâmica entre alguns animais, pode-se trabalhar com a
hipótese de que esta escolha beneficie
a sobrevivência da espécie, mas este argumento não é facilmente sustentável, pois não
podemos afirmar com precisão, que todos os comportamentos do reino animal
estejam submetidos à primazia deste instinto de preservação. Exemplo disto são
os caso dos comportamentos homossexuais que vêm sendo encontrados e estudados
em diversas espécies animais, sem que se tenha encontrado até o momento,
qualquer ganho aparente para eles além da pura satisfação instintual de seus
indivíduos.
Que a tendência
monogâmica entre algumas espécies animais seja indicativo de que o amor, como
lei fundamental, também esteja inscrito no DNA, assim como a conhecida
inclinação para o mal, pode ser um fato. Ou ao contrário, que isto revele um
tipo de cultura incipiente, é uma outra possibilidade, já que também algumas
espécies compartilham a interdição do incesto e apresentam códigos de
comunicação por vezes bastante sofisticados que poderiam ser aproximados à
algum tipo de linguagem.
Qualquer comportamento
do mundo animal, que vejamos aproximar-se dos padrões típicos de nossa
humanidade, costuma despertar incredulidade ou mal estar, mas os estudos de
etologia e o mapeamento genômico vêm prestando este serviço à destituição
narcísica de nossa espécie, diminuindo progressivamente as distâncias que
separam o humano e o animal.
Seja como fruto de renúncia e
transformação pulsional à serviço do processo civilizatório, seja como
resultado de determinações éticas ou bioquímicas, a prerrogativa da fidelidade
e da monogamia é mais um dos
aspectos comportamentais que deixa de ser característica exclusiva da espécie
humana e passa a ser compartilhada com alguns outros habitantes do planeta com
os quais também dividimos sua ocupação. Cabe-nos reconhecer e relativizar nosso lugar nesta delicada rede de
criaturas e estabelecermos um novo pacto de fidelidade social que amplie e
inclua o respeito à vida em suas diversas manifestações.
Obrigada.