RESENHA: CIÊNCIA RAZÃO E PAIXÃO

ORG. Edgard de Assis Carvalho e Maria da Conceição de Almeida. EDUEPA

Tereza Mendonça

Ao tomarmos nas mãos este novo livro de Ilya Prigogine, temos uma agradável surpresa: parece um livro de arte. Folhas em papel couché e um projeto gráfico bastante incomum em livros acadêmicos. Mas para aqueles que já conhecem sua obra, nada poderia ser mais coerente. Nascido na Rússia em 1917, prêmio Nobel de Química em 1977 por seus trabalhos ligados às estruturas dissipativas e organizações complexas longe do equilíbrio, o autor não poderia ser qualificado como um pensador das ciências exatas.

Ao contrário, pensador da incerteza e da instabilidade, sua obra vem contribuindo para tornar mais permeáveis os rígidos limites erguidos pelo cartesianismo e pela física clássica, entre o mundo físico e o mundo dos valores humanos. Empreiteiro da reconciliação entre arte, cultura científica e cultura filosófica, Prigogine aposta na construção de passarelas interessantes entre os diferentes domínios do conhecimento, recorrendo à noções das ciências da complexidade como metáforas úteis para as ciências humanas.

Se em busca do reconhecimento de um estatuto de cientificidade, as ciências humanas tomaram de empréstimo o modelo determinístico das ciências naturais, Prigogine caminha na contra-mão. Refutando o dogmatismo do determinismo, alinha-se a Bergson para reconhecer, na liberdade, uma característica intrínseca da natureza, concebendo “o real como um caso particular do possível.” 

Ao longo de sua trajetória como pesquisador e no esforço por uma ampliação da física fundamental, o autor vem colocando em dúvida o determinismo, orientando-se em duas direções que estão implicadas entre si: 1) Ao contrário de Newton, que elidiu a questão do tempo em suas teorizações e de Einsten, para quem o tempo não passa de uma ilusão tenaz dos seres humanos, Prigogine, com Bergson, vai pensar o tempo como invenção e formular uma flecha do tempo. Esta idéia de orientação temporal não implica inevitavelmente um caminho irreversível para o declínio ou a entropia. Ao contrário, abre a possibilidade de bifurcação, novidade e criatividade, permitindo à matéria inventar uma história repleta de interações. Configura-se então, um antes e um depois diferenciados, levando-o a afirmar: “sim, há uma liberdade na matéria.”2) Tentando trabalhar com o que considera um conflito ideológico entre tempo reversível e o advento da irreversibilidade, encaminha-se para a conclusão de que a irreversibilidade do tempo somente entraria na ciência a partir dos estudos dos fenômenos complexos. Prigogine aceita o desafio proposto pela observação intuitiva e no lugar das apaziguadoras certezas oferecidas pelas leis gerais que sacrificam ou iludem o tempo, o autor reafirma esta dimensão e passa a lidar com probabilidades. Enganam-se os que entendem esta proposta como um prêmio de consolação diante da ignorância científica para abarcar a complexidade dos fenômenos. A probabilidade aqui é vista como um fato intrínseco da natureza, inerente à sua capacidade de criar. 

Pensador que transcende em muito as trincheiras da especificidade de seu fazer científico, Prigogine nos conduz, através da leitura destes textos, à profundos exames de nossas práticas, quaisquer que sejam. Suas idéias sobre incerteza, flutuações, estruturas dissipativas e bifurcações trazem, para todas as áreas do conhecimento, uma necessária e inextirpável reflexão sobre liberdade, ética e criatividade.

Na espinha dorsal de sua obra, desordem e instabilidade deixam de ser vistas apenas como perturbações indesejáveis, para alcançarem o lugar de acontecimentos que, inerentes à vida, propiciam a abertura de diferentes caminhos. “A não-lineariedade implica a existência de soluções múltiplas. Nos pontos de bifurcações o sistema escolhe  entre várias possibilidades. Aqui reside o significado básico da auto organizacão ... 

É neste momento decisório, que aparece em pontos especiais nos quais a trajetória de um sistema se subdivide em ramos, que podemos dizer com Prigogine, que todas as direções são possíveis, mas apenas uma será seguida. Depreende-se daí a responsabilidade da escolha como ato derradeiro e fundante do novo. Marcação definitiva de um tempo irreversível e produtor de uma história. Se formos capazes de sustentar a responsabilidade da co-autoria, talvez possamos ler em Prigogine uma mensagem otimista: “ O mundo está em construção e todos podemos participar dela. ”

Em Ciência, Razão e Paixão, os organizadores reunem ensaios, resenhas e entrevistas, brindando-nos, por isto mesmo, com uma leitura que recria um clima de intimidade e proximidade com o autor.Para aqueles que se identificam com as premissas das ciências da Complexidade sua leitura é um prazeiroso reencontro, para aqueles que se sentem atraídos pelo tema, uma excelente porta de acesso e para os opositores, um contraponto indispensável.



 Resenha publicada na Revista Margem, PUCSP.