Tereza Estarque “Da Rivalidade à Solidariedade: uma travessia ética possível ?”

Da Rivalidade à Solidariedade: uma travessia ética possível ?

 

Tereza Mendonça Estarque*

 

“ As grandes solidariedades são, de fato, tecidas de servidão, alienação, exploração.”[1]

 

1.Introdução:

 

O pensamento da Complexidade nos ensina que as dicotomias não correspondem à realidade complexa da vida, mas às tendências simplificadoras de nosso modo de concebê-la. Não se pode, portanto, dentro desta perspectiva, pretender uma concepção de mundo na qual os modos de relações possíveis, egoísmo x altruísmo, rivalidade x solidariedade se apresentem de forma pura e isoladas. Devemos aprender a encarar estas modalidades de estar no mundo de forma menos maniqueísta, já que o egoísmo cumpre uma função vital para a sobrevivência do indivíduo e a rivalidade, da mesma forma, para a preservação da espécie. Esta afirmação pode parecer chocante num primeiro momento e é extremamente importante que seja compreendida, motivo pelo qual dedicarei especialmente a ela um dos tópicos deste trabalho.

 

 Na verdade, o melhor resultado possível parece ser um equilíbrio, decorrente da luta permanentemente empreendida entre estas polaridades. Equilíbrio aqui, deve ser tomado em seu aspecto de instabilidade, de impermanência, de ausência de vitória duradoura de certo grupo de força sobre outros. Sujeições, dominações e emergências se alternam, para a saúde de todas as formas de organização, sejam elas individuais ou coletivas.

 

No entanto, quando estamos diante de dilemas éticos, temos a tendência, plenamente justificável, de sonhar com o melhor dos mundos, do qual estariam banidos, definitivamente, sofrimento, injustiças, segregações,  enfim, todas as ações que, mesmo praticadas por um único individuo, maculam e envergonham  a totalidade da humanidade. Não me refiro somente aos grandes déspotas de nossa história, mas às pequenas tiranias cotidianas de ações ordinárias que repercutem, aqui e ali, produzindo seus efeitos no desencadear de uma infinidade de respostas auto e retro-afetantes que escapam ao nosso controle. Ainda assim, este inextrincável jogo de inter-relações e retroações que caracterizam o que Edgar Morin vai chamar de Ecologia da ação, é absolutamente necessário à vida.

 

O pensamento da psicanálise, que compartilho por minha formação, apresenta inúmeras afinidades com as idéias do paradigma da complexidade. É claro que não podemos falar de uma única psicanálise, pois sabemos que existem muitas, mas há sem dúvida uma área de interseção compartilhada que permite situar um discurso no campo da psicanálise. Não entrarei nesta discussão a respeito do que caracteriza sua especificidade. Direi apenas que seus fundamentos, lançados no ápice hegemônico do pensamento clássico, apresentam aspectos que o aproximam do modelo explicativo que veio a ser utilizado posteriormente pela teoria da complexidade. Por este motivo, creio poder servir-me de ambos, ou de suas convergências, para a abordagem do tema proposto.

 

Antes disto, e por se tratar aqui de um seminário sobre complexidade, tentarei situar o pensamento da psicanálise, tomando como ponto de partida o pensamento freudiano, dentro da perspectiva do pensamento complexo. Seria possível estabelecer esta relação ?

 

2.Psicanálise e Complexidade

 

Para começar esta aproximação, creio poder dizer que o Pensar Complexo requer uma operação psíquica de natureza narcísica; o narcisismo pleiteia estabilidade e o Pensamento Complexo  aposta na convivência com a instabilidade, com a incerteza, com o fugaz, com a possibilidade de coincidência entre ordem e desordem ou seja, uma difícil operação psíquica que faculte ao sujeito  relacionar-se com um saber para sempre inacabado. Bachelard[2]  já havia anunciado  em  1932, evocando as mudanças que se delineavam a  partir da nova ciência,  as perturbação psicológica trazida pela dúvida sobre a objetividade dos conceitos de base.

Idealmente,  para que possamos  transitar  nos interior destes saberes e para ancorarmos neles nossos pensamentos  e produções, teríamos que ser capazes de realizar esta operação que é, antes de mais nada, uma mudança pessoal  e subjetiva em relação  às nossas expectativas para com  o mundo.  O que esperar  do conhecimento? Como abordar  uma realidade  concebida  por um pensamento que a define como fugidia, incorpórea, faltosa? Não se trata de uma desistência diante de sua esmagadora complexidade, mas de um outro enquadramento que busca visualizar  sob outro ângulo,  a perda de uma objetividade  pretendida através do recorte dos objetos.  Trata-se de repensar a realidade a partir dos acréscimos  de informação que  advêm  do processo de contextualização de suas partes, redimensionalizando-a no inter-jogo  relacional que  indica  sempre a direção da multi-causalidade e da sobredeterminação dos sentidos.

 

Na oficina de psicanálise do CILPEC[3], no Rio de Janeiro, Edgar Morin comentou que o pensamento da psicanálise sempre foi complexo. Freud transitou com desenvoltura entre os diferentes saberes, literatura, biologia, antropologia, filosofia, física etc… Parodiando E. Morin, diríamos que Freud era um contrabandista de idéias,  um pensador transdisciplinar. Porém, viveu um período histórico onde o paradigma da ciência clássica imperava soberano. Utilizou a termodinâmica como modelo para o funcionamento psíquico e abusou de formulações determinísticas. Sua capacidade criativa, porém, foi além das amarras  paradigmáticas de seu tempo. Ao formular o conceito de inconsciente, Freud apontou para um furo no conhecimento do homem sobre si próprio, e acertou em cheio os ideais de completude do saber iluminista, o que se caracterizou na nomenclatura de Lacan, como nossa condição de sujeito dividido. Ao postular uma outra lógica para o inconsciente, balançou os sólidos alicerces da lógica formal  e concebeu uma outra temporalidade, a da posterioriedade. Freud legitimou a intuição dos escritores criativos como forma de acesso à realidade, trabalhou com temas polêmicos como a telepatia e tantos outros desprezados pela ciência clássica. Através do conceito de pulsão, aboliu as fronteiras entre natureza e cultura, costurando o somático e o psíquico. Utilizou formulações sobre o psiquismo do indivíduo para pensar e esclarecer modos de funcionamento de grupos e de povos, como fez em Moisés e o Monoteísmo, antecipando os furos para cima e para baixo que Morin aponta em “ O Paradigma Perdido.” Portanto, parece claro que a psicanálise contribuiu, junto a outros saberes, como a física quântica, a cosmologia e a biologia molecular, para a criação do solo epistêmico que se tornou conhecido como Novo Paradigma.

 

Vejamos abaixo uma breve síntese dos principais aspectos que caracterizam as diferentes formas de pensar constituintes dos chamados paradigmas da modernidade e da complexidade, bem como uma aproximação entre este e o que podemos pretender chamar de paradigma da psicanálise freudiana.

 

Idéias Básicas do Paradigma Moderno

 

1) Separação entre homem e natureza (sujeito e objeto)

 

2) Natureza submetida a leis deterministas (causa e efeito)

 

3) O real é dado, cognoscível por inteiro

 

4) Sujeito pleno de consciência

 

5) O conhecimento está ao encargo da razão

 

6) A verdade é um caso de aquisição ou de adequação

 

    (via representação)

 

7) O tempo é espacializado.

 

Idéias Básicas do Paradigma da Complexidade:

 

1) Nova aliança entre homem e natureza

 

2) Autopoiesis

 

3) O real é ao mesmo tempo dado e produzido,

 

    apresentando-se sempre faltoso.

 

4) Furo no saber totalizado: formulação do inconsciente

 

5) Razão e intuição se complementam

 

6) O fim das certezas/Crise da representação/Crise da percepção

 

7) O tempo é produzido no interior dos sistemas. (flecha do tempo)

 

 

Idéias Básicas do Paradigma da Psicanálise:

 

  1)Reafirma a aliança entre o homem e a natureza:

 

   – Freud postula que o homem seja o ser da pulsão; este conceito supera o dualismo cartesiano, costurando, por seu caráter limítrofe, o somático (natureza) e o psíquico (cultura).[4]

 

   – Freud construiu hipóteses teóricas a partir de comparações entre o funcionamento de organismos unicelulares e o de organismos complexos (homem). Estabeleceu analogias entre o psiquismo dos indivíduos e o modo de operar dos grupos sociais. Neste sentido, havia já intuído, antes da revolução biológica, os “furos para cima e para baixo”, dos quais nos fala Morin.

 

  – As descobertas das pesquisas etológicas vêm diminuindo o abismo que, segundo ele, nosso narcisismo havia aberto entre os homens e os animais. Hoje sabemos que existe tabu do incesto entre algumas espécies animais, assim como organizações sociais e códigos de linguagem relativamente complexos.

 

2) Determinismo X Sobredeterminação

 

   – A questão da causalidade psíquica é bastante pregnante na obra de Freud e converge, em muitos aspectos, com o paradigma clássico. Contudo, Freud trabalha privilegiando a sobredeterminação em detrimento da causalidade linear, ainda que isto produzisse um certo desconforto em relação às exigências do paradigma cientificista vigente em sua época. Há também em seu legado, um espaço privilegiado para o inesperado, pois há algo na pulsão e na própria estrutura do inconsciente, que sempre escapa à causalidade em seu sentido restrito.

 

 3) O real é ao mesmo tempo dado e produzido apresentando-se sempre como faltoso.

 

Freud nunca negligenciou a realidade vivida, quer seja pelo indivíduo ou pela espécie. Importava-se com os dados precisos da anamnésia enquanto realidade concreta, mas também enfatizou a realidade psíquica como produtora de novas significações, na eterna tentativa do sujeito para circunscrever este Real impossível de simbolizar, não cessando contudo de se apresentar em sua dimensão bruta e faltosa, produzindo um jogo dinâmico e interminável de construção da realidade que experimentamos.

 

A idéia de séries complementares também nos indica esta interseção combinatória entre o real herdado e constitucional, as aquisições do vivido e os fatores desencadeantes, frutos do acaso.

 

 4) Furo no saber totalizado: formulação do inconsciente

 

 Esta teria sido, talvez, a principal e mais desconcertante contribuição da psicanálise para a história do pensamento. Suas conseqüências para a ciência precisam ultrapassar a esfera da filosofia e atingir o cerne da formação dos cientistas, ainda fundamentalmente técnica, para que se possa, então, auferir mudanças significativas em sua prática.

 

  5) Razão e intuição se complementam:

 

   – Freud dava extrema importância ao conhecimento intuitivo, chamado por ele de endopsíquico; conferia lugar privilegiado aos escritores criativos, entendendo a ficção e a psicanálise como outras formas possíveis, além das ciências duras, para o conhecimento da realidade.

 

  – O homem deixa de ser apenas um ser racional e passa a ser visto como um ser de afetos.[5] Freud admite ainda a possibilidade de comunicação entre inconscientes[6], hipótese que, por motivos óbvios, dado o contexto cultural em que vivia, teve que deixar um pouco de lado, sob pena de ver a psicanálise ser degradada, confundida com crendices e superstições.

 

6) O fim das certezas.

 

 Ponto de vista em perfeito acordo com a ética da psicanálise que é contrária a qualquer visão de mundo e a qualquer pedagogia.

 

Na direção de uma cura, o analista não pode saber, a priori, os resultados de uma análise, uma vez que o processo não visa atingir objetivos definidos previamente. O trabalho analítico ancora-se nos movimentos do desejo o que acarreta necessariamente um exercício de convivência com o princípio da incerteza.

 

 7)Descontinuidade temporal

 

  – O inconsciente é atemporal e sua emergência é descontínua e imprevisível. Além disto, Freud trabalha com a hipótese de caracteres transmitidos filogeneticamente e com o conceito de a posteriori. Não há linearidade, mas encontro de diferentes tempos cujos significados se atualizam incessantemente.

 

 

3. Rivalidade e solidariedade no mundo biológico

 

Feita esta aproximação, entre Psicanálise e Pensamento Complexo, passemos ao tema que é o objeto principal deste texto: rivalidade e solidariedade.

 

Meu ponto de partida nesta abordagem localiza-se no universo biológico, para finalmente chegar às organizações sociais humanas. Maturana e Varela introduzem, a partir da biologia, o conceito de autopoiese. Ainda que com algum prejuízo de sua especificidade e com as ressalvas quanto à necessidade de rigor em sua aplicação, a extensão deste conceito para análise dos sistemas sociais, transcendeu em muito as expectativas e intenções iniciais de seus propositores. O que esta noção vem afirmar como grande novidade é a existência de um espaço de interseção entre o dentro e o fora, mediada pela autonomia do sistema. Baseando-se na concepção de auto-referência, postulam que todo ser vivo opera em dois diferentes registros: clausura operacional e acoplamento estrutural. Pelo primeiro, entende-se o conjunto de transformações e operações cognitivas no interior de um espaço delimitado que lhe confere identidade. A partir disto, algo da ordem de um si-mesmo permanece como memória celular, independentemente das condições do meio ambiente; este reconhecimento do próprio implica a possibilidade de fechar-se sobre si, preservando-se em relação às invasões exteriores. O que importa aos autores é ressaltar o aspecto da autonomia do sistema, o que não pode, de forma alguma, ser confundido com fechamento ou ausência de interação.[7]

 

O outro registro, nomeado como acoplamento estrutural, é introduzido com o objetivo conceitual de tentar criar uma alternativa à oposição solipsismo x representacionismo, apontando para um espaço de interseção relacional que não privilegie o interior ou o exterior,  “ fazendo da reciprocidade histórica a chave de uma co-definição entre um sistema autônomo e seu meio.”[8] Complexificando em muito o processo, a idéia de input-output que caracterizava a computação e fazia do organismo um puro sistema de processamento de informação, é substituída, com vantagens, pela concepção de uma identidade somática dos multicelulares, dotando o corpo de um verdadeiro sistema cognitivo. O sistema imunológico é tomado como exemplo, por excelência,  de um sistema autopoiético portador de autonomia e cognição própria ao contrário da idéia clássica de um mero sistema de respostas aos ataques exteriores que agiriam como efeitos perturbadores.

 

Esta conceituação interessa aos propósitos deste texto por permitir uma exploração da idéia do próprio nos seus aspectos egocêntricos e auto-referentes, mas, também, das possibilidades intrínsecas aos processos de acoplamento, apresentando-os como funcionamentos vitais interligados e isentos de coloração moral. A escolha de um destes aspectos em detrimento do outro, valorizando-os positiva ou negativamente, ao invés de percebê-los em suas íntimas relações de mutualidades históricas, terá como resultado um posicionamento reducionista.

 

Seguindo esta linha de pensamento, todas as interações que têm lugar na biocenose[9], podem ser categorizadas em três diferentes tipos: complementares, concorrentes e antagônicas. Morin compara as duas últimas a oceanos que circundam arquipélagos de complementaridade/solidariedade. Ainda que mais numerosas, opera-se um equilíbrio entre tais processos de destruição e de coesão. Num primeiro momento, estas modalidades de convivência podem parecer excludentes ou indesejáveis; uma observação mais atenta revela, muito ao contrário, que a delicada teia da vida depende profundamente desta curiosa coexistência. Vejamos um exemplo claro e simples: a abelha parasita a flor alimentando-se de seu pólen mas, simultâneamente, ela o dissemina contribuindo para o ciclo vital da planta. O conjunto plantas/animais encontra-se em permanente combate biofágico, mas também em constante simbiose, o que garante o circuito oxigênio/gás carbônico de uns aos outros.

 

Toda organização viva tende a lutar para perseverar na existência, o que faz do autocentrismo uma característica fundamental nesta tarefa de manutenção da vida. Mais do que isto é necessária, como estamos vendo, uma função auto-referente que faculte ao indivíduo situar-se em relação ao espaço discriminando um dentro e um fora de si, diagnosticando aquilo que agrega e pode portanto ser incorporado, distinguindo-o de tudo aquilo que, por seu efeito desagregador, deve ser repelido ou mesmo combatido. Mesmo no reino vegetal, as rivalidades em busca da luz solar produzem sujeições locais, reveladas ao observador na torção de galhos e na disputa das raízes vizinhas que se empurram, se sobrepõem e se aniquilam. “…a competição vegetal chega à vezes, à emissão de substâncias mortais que eliminam o concorrente. [10] No reino animal, predações e competições de toda sorte entre as espécies rivais, são plenamente justificadas pela imperiosa dominação imposta pela necessidade de preservação .

 

Vemos que, do plano biológico, podemos retirar inúmeros exemplos desta atividade própria do vivo, desde as relações dos unicelulares entre si e com seu meio, passando pelo mundo vegetal, até as sociedades de mamíferos, inclusive primatas, chegando às sociedades humanas históricas.

 

O pensamento ecologizado permite avaliar que, no conjunto, as ações resultam ser simultaneamente solidárias, concorrentes e antagônicas. Aponta ainda para o paradoxo da auto-ecofinalidade, segundo o qual, uma ação de finalidade egoísta, que é necessária muitas vezes para a preservação do indivíduo, pode ser transformada em seu oposto, por seu pertencimento a uma engrenagem  de ações que inter-retroagem e escapam ao controle do ator, o que nos demonstra a complementaridade destas duas lógicas inerentes à vida: a autológica e a ecológica.

 

Dentro desta perspectiva, não faz sentido pensar a solidariedade como um ideal e a rivalidade como um mal a ser extirpado, pois antagonismo e complementaridade não se excluem, ao contrário, eles se retroalimentam: “ não existe um estado ideal a alcançar e depois a conservar…mas busca permanente em direção ao além, superações que devem ser superadas, nova aventura da evolução, e, se tivermos sorte, novo nascimento do homem…”[11]

 

É importante notar este caráter de independência da ação em relação à sua finalidade, pois assim podemos compreender o princípio de incerteza encerrado no coração da ecologia da ação. Implica dizer que, as melhores intenções não garantem a captura de seus propósitos por outras intenções: “ Importa, sobretudo desconfiar da crença no fato de a ação operar logicamente no sentido de seu projeto: a ação pode entrar no jogo das finalidades inimigas. Não é que exista ‘cumplicidade objetiva‘ com inimigo real; é que existe complexidade objetiva da vida real.“ [12] Este pensamento retira a ação de qualquer registro maniqueísta e convida a refletir sobre seus riscos, pois toda bondade natural implica barbárie natural.

 

 

4. Rivalidade e Solidariedade nas sociedades humanas históricas.

 

 “Todo olhar sobre a ética deve reconhecer o aspecto vital do egocentrismo assim como a potencialidade fundamental de desenvolver o altruísmo”[13]

 

 

Situações de impasse, ou momentos de bifurcação, no dizer de I. Prigogine,[14] no crescimento de uma organização complexa, podem configurar a necessidade de imposições e sujeições, mas também de cooperação e complementaridade, como processos emergentes mantenedores ou mesmo fundantes de uma outra ordem. No plano da biocenose, como vimos, vigoram as leis da vida, autoconservação e conservação da espécie, no intuito sempre insistente de perseverar na existência. No interior deste combate, não há lugar para juízos de valores.

 

Nas sociedades humanas históricas, as interações entre classes e grupos sócio-econômicos, podem ser equiparadas àquelas que se travam entre espécies nos ecossistemas. Porém, é neste ponto da organização que assistimos ao nascimento de nossos principais dilemas éticos e, por conseqüência, começamos a construir um complexo sistema de atribuição de valores e regras que são simultâneamente produzidas por nossas necessidades biológicas, antropológicas, sociológicas e históricas.

 

Para tentar assegurar a realização destas premissas, a idéia de estratégia ganha realce como forma de gestão possível do impasse, seja para evitar que a rivalidade se exceda em processos parasitários exacerbados de exploração ou mesmo da necessidade de consumação do  sacrifício.

 

A grande maioria dos mitos fundantes da civilização ocidental, estão baseados na rivalidade, ou mais do que isto, no assassinato. Segundo Dany-Robert Dufour, em Os Mistérios da Trindade, a possibilidade de representação da morte seria o fundamento do laço social: “ para que dois estivessem juntos, era preciso que um terceiro tomasse, de boa vontade ou à força, real ou simbolicamente, a morte sobre si.[15] ” É preciso que alguém morra, concreta ou simbolicamente, para que se crie, à partir daí, um laço social. É o que Freud trabalha em Totem e Tabu: a partir do assassinato do pai, os filhos instauram a Lei e o Tabu, constituindo-se assim, como grupo social. É assim também no cristianismo, onde o sacrifício, martírio e morte do Filho-Pai, não pode ser dispensado. Nos mitos gregos, são profusas as referências à rivalidade entre pai e filhos, que Freud apreendeu e utilizou para formalizar sua teoria sobre o complexo de Édipo.

 

Proposição oposta à idéia do parricídio como ato fundante do laço social é sustentada por Castoriadis para quem o instituído já está presente na horda; muito antes de ser um fato da natureza, a horda já revela em seus processos de regulação, a plena ação do imaginário, sem o qual seria impossível conceber a submissão dos descendentes e a não continuidade do processo sempre reinstaurado do assassinato do pai: “…o assassinato do pai não é ato inaugural da sociedade mas resposta à castração ( e esta o que é senão uma defesa antecipada?).”[16]

 

René Girard aponta na mesma direção, ao enfatizar que “ O desejo do parricídio e do incesto não pode ser uma idéia da criança; é evidentemente a idéia do adulto, a idéia do modelo[17]. Girard, sublinha que o caráter primeiro da identificação funda-se no desejo mimético: “ a concepção mimética desliga o desejo de qualquer objeto; o complexo de Édipo enraíza o desejo no objeto materno; a concepção mimética elimina qualquer consciência e mesmo qualquer desejo real do parricídio e do incesto…[18] Continua dizendo que Freud opta pelo complexo e “ Quando é necessário escolher entre os efeitos miméticos e o desejo parricida incestuoso, ele escolhe resolutamente este último. Isto não quer dizer que ele renuncie a explorar as possibilidades promissoras da mimese. O que há de admirável em Freud é justamente que ele nunca renuncia a nada.[19] Girard sustenta o argumento de que Freud teria tido a intuição da mimese como fundadora do laço social, mas terminaria por retomá-la apenas como saída do Édipo, na constituição do super-ego. Ou seja, em Freud, a identificação seria secundária, solução para o conflito, tentativa de reparação e não um modo inaugural de ligação fundada no desejo mimético.

 

No âmbito de outra discussão, mas apoiando-se também em Girard e Castoriadis, Jurandir Freire Costa aponta para o que chama o defeito central de Totem e Tabu: “ … onde ele (Freud) pensava que havia natureza, já havia cultura.”[20] Sustenta que a tese central deste texto seria sobre o poder de coerção da sexualidade sobre a vida humana, requerendo para fazer frente a ele, uma força de igual tamanho: a ameaça de morte ou a culpabilidade pelo assassinato. “ Isto não é o mesmo que dizer que o parricídio dá origem ao contrato social ”[21], e mais adiante: “ …é a instituição já instituída que profere a ameaça de morte, e não um puro movimento instintivo natural.[22]

 

No interesse desta argumentação, convém lembrar também o intenso debate que veio à luz nos anos 70, através de Deleuze e Guattarri em O Anti- Édipo,[23] livro no qual os autores também contestam a origem do desejo incestuoso tributária do filho, tomando-o como rebatimento, sobre a criança, dos sentimentos paranóicos do adulto.

 

Penso que o enraizamento da idéia recorrente do parricídio como ato constitutivo da ordem social, se encontra no cerne da constituição de uma moralidade neurótica do sujeito da civilização, gerando uma ambivalência de sentimentos, marcadamente amor e ódio, culpa (consciente e/ou inconsciente), temor ao castigo e necessidade de reparação em decorrência das ameaças concernentes às demandas egóicas de estabilidade narcísica. Este estado de coisas promove, defensivamente, ideais éticos de conservação que turvam o discernimento necessário à uma visão crítica e dinâmica requerida pelas velozes mudanças sócio-culturais que se verificam, especialmente a partir dos aportes e desafios que nos chegam cotidianamente pelas mãos da tecnociência.[24]

 

Em minha opinião, é preciso que se realize um trabalho da cultura no sentido de favorecer a superação do modelo mítico fechado[25] como modelo ordenador da cultura. Para realizar esta operação cultural, que passa imperativamente pelo que Morin chama auto-ética e civilização da barbárie interior tentarei esboçar alguns passos que, se não suficientes, certamente são necessários ao processo:

 

1)           Trabalhar a questão do desamparo, aprendendo a conviver com a incerteza que provém da multiplicidade ao invés das antinomias simplificadoras que resultam em impasses insolúveis.

 

2)           Efetivar uma transformação nas relações Homem-Deus e Pai-Filho, implicando uma transmutação da função simbólica paterna que deveria empreender uma travessia superadora do fantasma paranóico do pai, concebendo sua anterioridade em relação ao desejo neurótico do filho.

 

3)            Que o assassinato do pai e o sacrifício do filho, tal como se desenrolam no modelo mítico fechado, possam se reinscrever de forma diferenciada, permitindo a passagem da rivalidade inevitável à uma solidariedade responsável entre os irmãos.

 

4)            Elaborar a destituição da necessidade do herói e do fascínio narcísico que ele desperta em sua solidão onipotente, encaminhando um novo posicionamento subjetivo que, dispensando a idéia de um pai que tudo pode e de um herói que com ele rivalize, nos coloque em posição de assumir a responsabilidade pelo devir, abrindo caminho para o laço social solidário.

 

 

Morin propõe uma perspectiva transmitológica para pensar a constituição da cultura. Afirma o caráter sociologicamente primeiro, anterior, fundamental e fundador da fraternidade[26]. Questiona a anterioridade do pai como sistema de referência que precede ao filho, constituído pelas representações ligadas ao poder, à soberania, à dominação e à hierarquia. Esta construção imagética teria surgido no processo de hominização, já que algumas sociedades arcaicas  ignoravam a paternidade biológica, sendo a função protetora entregue à guarda de um tio ou irmão. Nesta linha argumentativa, faz uma crítica à vulgarização psicanalítica, segundo a qual a imagem do chefe deriva do pai, quando, na verdade, evolutivamente, organizacionalmente e ontologicamente se passaria o contrário, ou seja, é a imagem do chefe que foi projetada sobre a família originando a figura do pai que, associando-se ainda à idéia de deus, beneficia-se duplamente. Para Morin, esta relação fraterna é extragenética e formada por indivíduos gerados de mães e pais diferentes; a estrutura piramidal não é constituinte da cultura, mas ao contrário, ela se desenvolve sobre uma base fraternal. O avanço desta perspectiva comporta para ele, não apenas uma vantagem teórica, mas remete também a uma mensagem política que contraria a naturalização da relação hierarquizada na constituição social. Para complexificar a idéia de pai, sugere que sejam agregadas a ela algumas virtudes igualmente importantes, como a sabedoria, experiência, tomada de responsabilidade, de iniciativa, de decisão.[27]

 

A desmonopolização do pai não elimina a hipótese do conflito, pois a fraternidade social é, primeira, contra o exterior, o inimigo comum, mas a rivalidade se gesta no interior dos grupos, conduzindo à desigualdades dominações e competições. Morin vai se servir do mito de Rômulo e Remo, considerado por ele um mito antroposocial profundo, para contrapor-se à idéia simplificadora freudiana do parricídio, especialmente no que se refere ao culto do pai morto como verdadeira base da organização social humana, pois desta forma, Freud mascara e prejudica o sentido do seu próprio mito: o achado sócio- antropológico da fraternidade.[28]  A revolta contra o pai e a instauração de sua autoridade pela via de uma sacralização, pode ser substituída por uma regeneração fraternitária da organização social.

 

Gostaria de fazer uma diferença que me parece importante, entre a simbolização da morte e a necessidade de que ela se cumpra em sua concretude. Em psicanálise, acredita-se que a possibilidade de simbolizar possa desfazer a necessidade de uma passagem ao ato. Aquilo que se realiza no corpo, de um indivíduo ou de um povo, seriam os restos de um real que recusou sua inscrição no simbólico. Ainda assim, nesta operação que transforma a necessidade concreta do assassinato em possibilidade de simbolização desta morte, o preço a ser pago para a constituição do sujeito se efetiva pela moeda da culpa. O que resulta da adoção do mito do parricídio e do modelo de Édipo utilizado por Freud é, necessariamente, o sujeito neurótico da civilização[29]; para este sujeito, a produção criativa é transformada em produção de sintomas e a cultura, “ a miséria banal à qual devemos nos resignar, após abrir mão da miséria neurótica, como dizia Freud.”[30]

 

Freud parte da idéia do conflito, visto que o desejo é sempre ligado ao sexual infantil, possessivo, incestuoso, rivalizante e, portanto, interditado pelo ambiente, para que este pequeno ser possa inserir-se nos moldes aceitáveis do processo civilizatório. Em Freud, tudo se passa como se estas intensidades pulsionais que insistem e tentam, pela via representacional, alguma inscrição possível no psiquismo, só pudessem fazê-lo driblando a  interdição e o recalque. Em interpretação dos Sonhos, ficam claros os subterfúgios que permitem o compromisso entre a satisfação do desejo proibido e de sua expressão, sempre dissimulada pelos processos de deslocamento e condensação, restando como saída, o sintoma, o sonho, e a sublimação.

 

Acompanhando Winnicott e repensando Freud, Jurandir Freire Costa apresenta o seguinte argumento: “ Na leitura da origem freudiana, a função do poder é a repressão dos excessos pulsionais, donde a importância da interdição; na de origem winnicottiana, o poder se revela na capacidade do ambiente tolerar, sem revide, o ímpeto das pulsões, dirigindo-o para a criatividade. A cada um, diríamos, a sua Holanda. A metáfora preferida de Freud é o dique holandês edificado para conter o avanço do mar e a inundação iminente; a de Winnicott é o moinho de água ou vento, que aproveita a força da natureza para realização de trabalhos úteis” [31]

 

A perspectiva winnicottiana não vê, nas intensidades pulsionais, a mesma fonte de risco de adoecimento individual ou coletivo, mas enfatiza enormemente a função do ambiente, para que estas forças possam se desenvolver no sentido da criatividade e da saúde, o que, dentro de uma perspectiva vitalista é para onde elas tenderiam a caminhar, desde que o ambiente não atrapalhasse este curso. Neste sentido, Winnicott parece realmente oferecer  uma saída melhor para o processo civilizatório, em relação à proposta freudiana. Apostando no aumento das potências criativas incentivadas por obstáculos bem medidos que o mundo coloca em relação a seu escoamento imediato e ainda, na conquista da autonomia como consequência deste processo, a vida pareceria poder fluir de forma mais leve e confortável.

 

Não creio, contudo, que possamos ser excessivamente otimistas no que concerne  a esta interrelação tão suficientemente bem ajustada entre o indivíduo e o meio que o circunda. O ambiente suficientemente bom implica um  processo quase impossível de ser qualificado ou quantificado, visto que o ponto ótimo comporta nuances relacionais extremamente complexas que trabalham entre as possibilidades de complacência e resistência, no combate travado e tecido como estratégia no interior do espaço transicional, seja ele a relação mãe-bebê, o setting analítico ou qualquer outro campo social mais abrangente.

 

 Morin assinala as dificuldades inerentes a este percurso de construção de si e do laço social fraterno: “A tolerância é fácil para o indiferente e para o cínico, mas difícil para o sujeito de convicções. Ela comporta sofrimento; o sofrimento de tolerar a expressão de idéias revoltantes sem se revoltar.”[32] A resistência, por outro lado, é tomada por ele como um outro polo de premissa ética igualmente difícil: resistir à nossa barbárie interior[33] e à crueldade do mundo.[34]

 

A complexidade inerente ao pensamento freudiano, leva frequentemente a idas e vindas teóricas por vezes paradoxais. Assim, referindo-se à sublimação, afirma: “ Se nos deixarmos levar pela primeira impressão, somos tentados a dizer que a sublimação é um destino da pulsão forçado pela civilização. Mas seria melhor se refletíssemos mais a respeito.” [35] Winnicott avança nesta direção onde Freud bascula e liberta a criação humana das necessidades sublimatórias resultantes de uma sexualidade interditada; o pan-sexualismo freudiano deixa pouco espaço para se pensar a potência criadora e o impulso para o conhecimento[36]como positividades e não como satisfações substitutas. Neste prisma, não cabe também tomar a pulsão como produção da história em geral e da história da psique singular, construção tecida entre o imaginário social e individual.[37]

 

 As abordagens e discussões em torno do tema das pulsões são muitas; mas quando se trata de tomar posição quanto ao campo teórico mais aceitável para dar conta da negociação possível entre toda sorte de impulsos individuais e as necessidades da vida coletiva, da qual emergem os processos criativos, não me parece, contudo, que o problema seja de fácil resolução.

 

Em minha opinião, as razões de Winnicott complementam as de Freud, mas não as excluem por completo. Se não creio ser necessário a idéia do parricídio como fundante da cultura, não penso ser suficiente abandonar a idéia freudiana do caldeirão pulsional, pois o pior da crueldade e o melhor da bondade do mundo estão no ser humano. [38]A barbárie individual e coletiva fazem parte de todos os nossos espaços, do pessoal ao familiar, não poupando as instituições sociais mais bem intencionadas, desde os pequenos, médios e variados tipos de associações humanas até às maiores de nossas formações, os Estado-Nações e a Sociedade-Mundo, visto que o ambiente frequentemente se excede em processos de intolerância, inflexibilidade ou de condescendência e complacência, variando estas modalidades de acordo com os momentos históricos e sócio-culturais que, por sua vez, condicionam traumas, ressentimentos, desejos de vingança, mas também movimentos de superação, novas possibilidades de gestão do sofrimento e do sacrifício, atitudes voltadas para o perdão, a reconciliação, a solidariedade.

 

O que a idéia de sacrifícios coloca em questão é a perspectiva do destino. Se pelo menos no ponto de vista freudiano, há sempre sacrifício no cerne do processo civilizatório, seja o assassinato do pai pelos irmãos no sentido que configura uma vítima, ou o sacrifício pulsional no indivíduo, então não há autonomia da vontade. Neste sentido, penso que Lacan se equivoca ao postular sua ética ancorada em Antígona. Não se pode falar em autonomia da vontade neste caso, pelo menos não no sentido Kantiano do termo, que é como Lacan o faz. A morte consentida por ela, nada tem a ver com autonomia, mas em consentir incestuosamente com a maldição do destino lançado sobre Édipo, que não pode livrar dele seus descendentes, até a extinção de sua linhagem.[39]

 

Recusar-se a cumprir a maldição de um destino funesto implica afirmar uma ética da diferenciação que é própria da vida:“ Não nascemos para morrer, mas para inovar”[40]  Não significa, necessariamente, fazer conchavos ou ceder do seu Desejo, ou seja, não significa que a ética seja reduzida à política. “ Não se pode aceitar a dissolução da ética na política, que se torna então puro cinismo. Não se pode sonhar com uma política serva da ética.”[41]  Ao contrário, a complementaridade dialógica entre ética e política redefine a necessidade do heroísmo e acentua a importância da estratégia, que “ não pode ser concebida apenas como uma adaptação à um meio: é uma adaptação às incertezas e aos riscos de um meio, o que é contrário de uma adaptação stricto sensu, visto que a estratégia desenvolve precisamente uma autonomia em relação ao meio. A estratégia não pode ser concebida somente como um ajustamento da ação às circunstâncias, isto seria esquecer que ela é também transformadora das circunstâncias”[42]

 

Assim, talvez possamos dizer que a estratégia se tece na dialógica entre a necessidade da ação ética do herói e a política indispensável à administração do laço social “ Pequenas ações divergentes são necessárias  ”[43] (…) O heroísmo tem o seu lugar, mas de forma pontual e para que não recaia na necessidade do sacrifício, deve ser sustentado até um certo ponto de não retorno, a partir do qual é preciso poder ceder e fazer laços.

 

Entre o cumprimento necessário de um destino transmitido e o exercício da autonomia da vontade, como podemos situar, atualmente, a questão do livre arbítrio, quando o universo das ciências de ponta sinaliza uma crescente tendência no sentido da crença no determinismo absoluto? Henri Atlan[44] focaliza esta discussão, extremamente atual, abraçando abertamente o mecanicismo, por oposição ao finalismo ou ao vitalismo[45]. Por mecanicismo entende-se um modo de compreensão dos fenômenos que pretende deduzir tudo o que existe, em última instância, à interação de processos físico-químicos. Trata-se de um determinismo absoluto; ainda que se leve em consideração a causalidade histórica e sócio-cultural, não há lugar algum para o livre arbítrio. Dentro desta perspectiva, a matéria viva perde qualquer atributo especial que possa diferenciá-la da não-viva, restando tão somente entre estes dois mundos, uma escala progressiva de graus de complexidade. Nenhuma finalidade dada à priori por alguma transcendência, nem mesmo algum atributo intrínseco à vida, mas apenas diferenças crescentes na complexidade das organizações.

 

Atlan não toma este partido de forma inconseqüente. Reconhece uma enorme diferença entre o determinismo que se lhe afigura como uma verdade contundente no dia a dia do laboratório e a vivência subjetiva de liberdade de escolha que ele  experimenta cotidianamente. Para resolver este aparente paradoxo, lança mão de Espinosa e suas formulações éticas sobre a liberdade, que só se torna possível quando conhecemos as causas adequadas da coisas e de nós mesmos. Supõe a “ experiência-limite da liberdade que seríamos capazes de levar a cabo se tivéssemos acesso ao conhecimento infinito dos determinismos naturais.”[46] Esta liberdade resultaria da consciência deste determinismo e do amor pelo conhecimento, ou “amor Dei intellectualis[47]Liberdade seria assim,  o fato de não ser determinada por nada além de sua própria lei[48]

 

Desta forma, pela aquiescência do determinismo e por um aumento assintótico do conhecimento das causas, podemos ser conscientes de nossas escolhas e manter uma atividade do espírito diante do conhecimento daquilo que nos determina. Em vários momentos do texto, Atlan deixa entrever a perspectiva concomitante da atividade e da subordinação implícita ao conceito de sujeito. Exemplifica citando o “Tratado dos pais”, do Talmud: “ Tudo está previsto e a permissão – ou possibilidade – está dada”. A ambigüidade da segunda parte da frase testemunha esta simultaneidade e abre a possibilidade de transformação dos destinos previamente traçados pois, “o conhecimento adequado das causas das afecções, aumenta a potência de agir por oposição às afecções produzidas por causas exteriores que o conhecimento adequado permite interiorizar.”[49] Neste contexto, a busca de perfeição surge como premissa ética, mas é entendida apenas como uma ocasião na temporalidade da existência humana, reconhecendo-se esta perfeição do conhecimento e da liberdade absoluta como um horizonte permanentemente em fuga.

 

Tomo aqui somente esta parte de sua argumentação, para pensar a atividade científica do homo creator, que pode ser assim entendida como exercício deste amor pelo conhecimento e  desejo de diferenciação que se opõe à transmissão da maldição. Em outro trabalho, tive a oportunidade de apontar, na perspectiva de Patrick Guiomard, “que a herança da linhagem do ponto de vista psíquico comporta sempre algo de incestuoso. Assim sendo, ocorreu-nos pensar que o esforço do Homo Creator no trabalho de alteração da herança genética poderia ser encarado sob o ponto de vista de uma ética da diferenciação. No que se refere à materialidade do corpo, se mantivermos a perspectiva relacional para a produção dos fenômenos como argumenta Stewart, a transmissão das patologias genéticas na linhagem poderia apontar, em si própria, para algum tipo de relação incestuosa.”[50]

 

Considerando-se os prejuízos para a liberdade responsável do homo creator[51], devemos buscar uma superação do modelo mítico fechado, uma estrutura dada a priori, como sistema de referência para a formação dos laços sociais. Este modelo põe em jogo, como vimos, a necessidade do sacrifício do herói; recoloca também a questão do destino, das causalidades lineares determinísticas, da heteronomia por oposição à autonomia da vontade e incorre necessariamente no cerceamento do amor intelectual, visto que a pulsão de conhecimento é concebida sempre como desejo transgressivo.

 

Seria possível pensar  uma outra forma de organização social que pudesse aproximar-se mais de uma ética vitalista,  no sentido bergsoniano do termo?

 

Vimos que,  no plano da biocenose, não caberia falar em sacrifício de uma vítima, pois, neste caso, o que estaria em jogo seria o combate de forças no qual, até o momento, têm prevalecido as moções da vida, ainda que as forças desagregadoras sejam parte inseparável deste processo que, como um todo, favorece as finalidades da vida servindo-se da morte. Devemos sempre buscar inspiração neste registro, antes de ceder às tentações fáceis de classificar os fenômenos sociais reduzindo-os a registros morais simplificadores, para tentar compreendê-los de forma amplificada, na dimensão de uma eco-lógica, ou seja, de uma bio-antropo-sócio-lógica.

 

Vimos também que, do ponto de vista das contribuições postas pela psicanálise, a perspectiva winnicottiana se apresenta como alternativa para pensar a cultura, de maneira que não seja necessário fundá-la nas premissas do modelo mítico fechado.

 

Contudo, a idéia da fraternidade fundadora não é suficiente para a instauração das relações solidárias. Morin sublinha a necessidade de superar a fraternidade fechada, apontando na direção da construção de uma nova fraternidade que se abra para o exterior. Se mesmo no interior dos grupos, o inelutável processo rivalitário está sempre condicionando toda sorte de sujeições e dominações, quando se trata então do contato com o estrangeiro, todas as defesas imunológicas são acionadas com a finalidade de efetivar a rejeição.

 

A consciência de que lidamos com uma hipercomplexidade antropossocial redimensiona a crença em soluções fundamentadas em alguns poucos pilares que se queiram definitivos ou duradouros. É possível que a espécie humana ceda lugar à emergência da humanidade como quarto termo, a partir dos três anteriores, indivíduo, espécie, sociedade. Isto seria menos espantoso, no entender de Morin, do que a organização piramidal complexa que se estabeleceu  entre moléculas  e células, na constituição de nossos seres policelulares. Contudo, este processo de idas e vindas, avanços e recuos aparentemente desalentadores no processo de hominizacão, são obedientes às necessidades de recursão e retroação próprias à vida.

 

Esta consciência implica compreensão de que o desabrochar da humanidade do homem na construção de uma Terra-Pátria que provincializaria os Estado-Nações, faz parte de um processo inventivo, criativo e não programado, impossível de prever. Conviver com um futuro incerto para a humanidade é  o grande desafio que se coloca para a comunidade dos irmãos que se une para enfrentá-lo, o que deve ser feito tendo em conta não o princípio de precaução, que imobiliza os movimentos e tenta deter o devir, mas a responsabilidade das escolhas possíveis para os espíritos que decidem, no espaço de duração de sua existência, apossar-se ativamente do conhecimento das causas adequadas de si.

 

É preciso saber que nem sempre o processo rivalitário implica falta de amor ao outro, podendo mesmo indicar seu excesso. À fraternidade amante, é preciso que se acrescente o que Morin chama inteligência consciente : “amor fraternal, inteligência consciente, sempre que forem ativos, constituirão não só a verdadeira resistência, mas o recurso permanente na luta interminável contra a crueldade.”[52]

 

Por fim, é preciso lutar contra a crença de que haja um ideal civilizatório a ser  alcançado e mantido. Não há solução final ou futuro radioso, mas apenas devemos ter a clareza de que a humanidade tornou-se uma comunidade de destino[53], no sentido de que há um destino comum no horizonte da espécie humana.

 

Se proponho a superação da idéia de um destino individual atrelado à linhagem familiar, pelo pressuposto limitante da contingência neurótica deste modelo referido à rivalidade com o pai, talvez a idéia de um destino comum amplificada para a comunidade terrestre nos faça prioritariamente irmãos, ligados por uma identidade compartilhada porque orientada para um futuro comum; incerto sim, mas que se delineia cada vez mais como um futuro que nos projeta no espaço comum de nossa humanidade, englobando todas as sociedades na ocupação de um território unificado que, na abundância ou na carência dos recursos naturais, emergirá como resultado da ecologia de nossas ações atuais.

 

 

 

 

 

 


* Tereza Mendonça Estarque, psicanalista, Dra. em Ciências Sociais PUCSP, Presidente do Instituto de Estudos da Complexidade

 

[1] Morin, Edgar. O Método 2, A Vida da Vida, Editora Sulina, Porto Alegre, 2001, p.76

 

[2] Bachelard, Gaston. O Novo Espírito Científico , 2a. Ed. Rio de Janeiro: Tempo

 

 Brasileiro, 1995.

 

[3] CILPEC: Congresso Interlatino para o Pensamento Complexo, 1998, Rio de Janeiro, Universidade Cândido Mendes.

 

[4] Opinião oposta a esta é sustentada por Jurandir Freire Costa. “ O intermediário pulsional, visto de perto, retoma o velho cartesianismo das substâncias, tritura-o e projeta-o no passado infantil, mas continua preso ao dualismo que, em princípio, deveria destronar.” In  O Vestígio e a Aura, Garamond, 2004, p.33 Esta interessante divergência evidencia, a meu ver, uma expressão do perspectivismo, mas não é minha intenção aprofundá-la. Cito-a apenas para que o leitor interessado possa se orientar e percorrer seu próprio caminho.

 

[5] Freud, Sigmund, Inibição Sintoma e Angústia (1926), in Obras Completas, vol.XX, Imago, Rio de Janeiro.

 

[6] Freud, S. História de uma Neurose Infantil (1918 [1914] ). Obras Completas, vol XVIII, Imago, Rio de Janeiro. Ver também na mesma coleção, os textos sobre Telepatia.

 

[7]  Maturana Humberto e Varela, Francisco. De Máquinas e Seres Vivos Artes Médicas, Porto Alegre,  1994, p.55

 

[8] id. ibid. p.58

 

[9] Biocenose: conjunto das interações entre os seres vivos de todas as espécies que povoam o meio geofísico. Definição retirada do Método 2, A Vida da Vida, Editora Sulina, Porto Alegre, 2001, p.33.

 

[10] ibid. p.39.

 

[11] Morin, Edgar. O Método 2, A Vida da Vida, Editora Sulina, Porto Alegre, 2001, p.495.

 

[12] Morin, Edgar. O Método 2, A Vida da Vida, Editora Sulina, Porto Alegre, 2001, p.102..

 

[13] Morin, Edgar. O método 6. Ética. Ed. Sulina, Porto Alegre, 2004.

 

[14] Prigogine, Ilya. Ciência Razão e Paixão, (orgs.) Edgard de Assis Carvalho e Maria da Conceição de Almeida. Belém, EDUEPA, 2001.

 

[15] Dufour, Dany-Robert. Os Mistérios da Trindade. Rio de Janeiro, Companhia de Freud Editora, 2000.

 

[16] Castoriadis, Cornelius, A instituição imaginária da sociedade. Editora Paz e Terra, S. Paulo, 1995, p.175.

 

[17] Girard René, A Violência e o Sagrado, Paz e Terra, S. Paulo, 1998, p.218.

 

[18]id. ibid., p.223.

 

[19] ibid. p.224.

 

[20] Costa, Jurandir Freire, Psicanálise e Contexto Cultural , Ed. Campus, Rio de Janeiro, 1989, p.64.

 

[21] id. Ibid.p.65.

 

[22] ibid. p. 66.

 

[23] Deleuze, G. e Guattari F. O Anti-édipo, Imago, Rio de Janeiro, 1976.

[24] Ver Terezinha Mendonça, Des-ordens da cultura: complexidade e sustentação ética do homo creator, tese de doutorado PUCSP, Ciências Sociais, 2000.

 

[25] Por modelo mítico fechado, Albin Leski entende o modelo trágico que obedece necessariamente à seguinte sucessão: conflito inconciliável, transgressão, castigo e morte como forma de reparação. Ver ALBIN, Lesky, A Tragédia Grega.  São Paulo, Ed. Perspectiva, 1996.

 

[26] Morin, Edgar. O Método 2, A Vida da Vida, Editora Sulina, Porto Alegre, 2001, p.482.

 

[27] ibid. p.485.

 

[28] ibid. p.485.

 

[29] Ver Terezinha Mendonça, Des-ordens da cultura: complexidade e sustentação ética do homo creator, tese de doutorado PUCSP, Ciências Sociais, 2000.

 

[30] Costa, Jurandir Freire. Playdoier pelos irmãos, In Função Fraterna, org. Maria Rita Kehl, ed.Relume-Dumará, 2000, p. 26.

 

[31] Id.Ibid. p.16.

 

[32] Morin, E. Método6, Ética, Editora Sulina, Porto Alegre, 2004, p.106.

 

[33] id. ibid. p.101.

 

[34] ibid. p.193.

 

[35] Freud, S. Mal Estar na Civilização, ( 1930) In Obras Completas, vol. XXI, Imago, Rio de Janeiro.

 

[36] Ver Terezinha Mendonça, Des-ordens da cultura: complexidade e sustentação ética do homo creator, tese de doutorado PUCSP, Ciências Sociais, 2000.

 

[37] Castoriadis, Cornelius, A instituição imaginária da sociedade. Editora Paz e Terra, S. Paulo, 1995, p.360.

 

[38] Morin op. cit, p. 192.

 

[39]  Sobre este argumento ver, Guyomard, Patrick.  O Gozo do Trágico – Antígona, Lacan, e o desejo do analista.  ”Transmissão em Psicanálise.  Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1996.

[40] Arendt, Hanna. “Nascemos para aprender”, Hélène Trocme Fabre, versão em língua portuguesa. Coordenação Terezinha Mendonça e Wanda Maranhão Costa. Co-produção Embaixada da França no Brasil e Instituto de Estudos da Complexidade, DVD.

 

[41] Morin, Edgar. Método 6, Ética, Ed. Sulina, Porto Alegre, 2004, p.80.

 

[42] Morin, Edgar. Método 2, A Vida da Vida, Ed. Sulina, Porto Alegre, 2001, p.256.

[43] Nietzsche, F.  Aurora – Pensamentos sobre os Preconceitos Morais  – Obras Incompletas. São Paulo,  Nova Cultural, 1996, §149.

 

[44] Atlan, Henri, A Ciência é inumana? Ensaio sobre a livre necessidade. TRD. Edgard de Assis Carvalho. Ed. Cortez, S. Paulo, 2004.

 

[45] Não posso deixar de pensar que, talvez esta classificação seja também uma fragmentação desnecessária e viciosa do pensamento. Afora o apelo ao transcendente, pode-se com certeza dizer que, no vivo há pelo menos uma finalidade principal, qual seja, a de perseverar na existência e que esta finalidade vitalista regula-se essencialmente por processos físico-químicos.

 

[46] Atlan, Henri, A Ciência é inumana? Ensaio sobre a livre necessidade. TRD. Edgard de Assis Carvalho. Ed. Cortez, S. Paulo, 2004, p.46/47.

 

[47] id. ibid. p.49.

 

[48] ibid., p.35.

 

[49] ibid. p.35.

 

[50] Ver Terezinha Mendonça, Des-ordens da cultura: complexidade e sustentação ética do homo creator, tese de doutorado PUCSP, Ciências Sociais, 2000.

 

[51] Sobre esta noção, ver Sustentação ética do homo creator in Ensaios de Complexidade2, org.Edgard de Assis Carvalho e Terezinha Mendonça, Ed. Sulina, 2004. Também, Homo Creator, um invejoso de Deus? In  Pecados  org. Eliana Yunes e Maria Clara Lucchetti Bingeme, Ed Loyola/PUC-Rio, 2001.

 

[52] Morin, Edgar. O Método 2, A Vida da Vida, Editora Sulina, Porto Alegre, 2001, p.494.

 

[53] Id.Ibid. p.493.