DEVANEIOS DE UM
CAMINHANTE COMPLEXO
EDGARD DE ASSIS CARVALHO
Professor Titular de Antropologia da PUCSP. Faculdade e PG/Ciências Sociais. Coordenador do COMPLEXUS, Núcleo de Estudos da Complexidade.
(Versão modificada de conferência realizada em Barcelona no simpósio internacional “Pensar as complexidades do Sul”, promovido pelo Institut Català de la Mediterrànea e a Association pour la pensée complexe, presidido por Edgar Morin, em outubro de 2000)
Resumo
Ética ou caos, eis o desafio que nos envolve. Para resgatarmos as potencialidades da vida e não sucumbir à floresta de símbolos criada pelos agentes da razão instrumental, é preciso encarar uma política de resistência, complexa, que resgate a hominização e a humanização.
A “ética da compreensão planetária” ocupa papel de destaque nessa nova paideia, e isso porque saberes éticos não podem ser concebidos como meras proposições abstratas, mas como atitude deliberada de todos aqueles que ainda acreditam ser possível que sociedades democráticas abertas se solidarizem, mesmo com a aspereza do caminho e o desânimo dos caminhantes.
Talvez os viajantes literários, agentes ideais dessa antropolítica porque correm pela terra sem limites e rancores, possam vir a contaminar políticos e intelectuais e, desse modo, produzir uma revolução no pensamento sem precedente na história do planeta.
Abstract
Ethics or chaos – that’s the challenge surrounding us. To redeem the potentialities of life and not to submit to the forest of symbols created by the agents of instrumental reason, it’s necessary to face a politics of resistance, which must be complex and able to redeem hominization and humanization.
The “ethics of planetary understanding” plays an important role in this new paideia, once ethical knowledge can not be conceived as mere abstract propostions, but rather as a deliberate attitude of all those who still believe that it’s possible for democratic open societies to be solidary, even with the roughness of the way and the dismay of others.
Perhaps literary travelers, the ideal agents of this anthropolitics, because they run through earth free of limits and resentment, may contaminate politicians and intellectuals and thus produce a revolution in thinking unparalleled in the history of the planet.
Sem dúvida, o mais valioso professor de física seria aquele que pudesse mostrar a nulidade de seus compêndios e esquemas frente à Natureza e às exigências do espírito. (Johann Wolfgang von Goethe)
Bem-pensar é a maior virtude, e sabedoria dizer coisas verdadeiras e agir de acordo com a natureza, escutando-a. (Heráclito)
Ler, entretanto, é uma atividade posterior à de escrever: mais resignada, mais civil, mais intelectual. (Jorge Luis Borges)
Os diferencialismos contemporâneos têm-se constituído como um dos maiores desafios da modernidade. Dotados de uma força centrípeta sem precedentes, vêm conseguindo disseminar ódios generalizados que se mimetizam numa violência quase incontrolável. Essa ‘geopolítica do caos’, que descombina com a pretensão do Terceiro Milênio de ser pretensamente reconhecido como a ‘sociedade do conhecimento’, assemelha-se mais a uma guerra civil generalizada do que a um espaço em que predominem a conciliação e a colaboração interculturais.
Ao que tudo indica, a luta pela existência, que parece comandar os processos evolutivos gerais, transferiu-se para a dominação de nações sobre nações, de homens sobre homens, com a justificativa de que a luta brutal garantiria a sobrevivência de povos incumbidos de liderar os destinos da humanidade. Aos outros ou às alteridades, se quisermos fazer uso de um conceito caro à Antropologia, caberia o qualificativo de impotentes, degenerados ou decadentes, matéria perdida da adaptação, como se os processos civilizatórios instalassem sempre o sucesso de poucos em deterimento da falência de muitos.
Progresso e barbárie consolidaram-se desde 1900 como componentes indissolúveis de uma nova idade das trevas que despontava no cenário mundial regido por nações cada vez mais eficientes, aptas a reprimir qualquer sentimento contestatório. Ao analisar os sentimentos originais do já passado século XX, Clive Ponting reiterou que «para as elites dos estados centrais, o crescimento da classe trabalhadora e dos movimentos socialistas era entendido como uma grande traição. O imperialismo e as guerras… representavam tentativas de canalizar as energias das massas para áreas menos perigosas[1]. Nesses anos inaugurais do terceiro milêncio continuamos a reproduzir essa ‘história universal da infâmia’ cegos, como Édipo, depositários de uma vergonha universal sem limites físicos, psíquicos, geográficos, nacionais.
Jorge Luiz Borges captou, de modo superlativo, essa universalidade infamante em 1935. Em Etcétera, um exercício de prosa narrativa como ele algumas vezes preferia denominar seu estilo, defrontamo-nos com um conjunto imaginário de atrocidades, imposturas, iniqüidades, incivilidades e vinganças cometidas por humanos que se encontravam detidos num castelo inexpugnável, lacrado por vinte e quatro fechaduras. Esse castelo metafórico, repleto de estátuas, expressa alguns dos contornos das sociedades atuais, envolvidas em crescentes desmandos, desafetos e contradições. Nele nada pode ser violado, porque em seus aposentos e masmorras encontram-se depositados os segredos de uma sabedoria mais digna. Por isso, os reis, governantes e donos atuais do poder, sempre adicionam mais uma fechadura em seus reinados. “Se alguma mão abrir a porta deste castelo, os guerreiros de carne, que se parecem aos guerreiros de metal da entrada, tomarão o reino”[2].
É como um castelo lacrado que percebo esse ‘planeta das desordens’, denominação cunhada por Ignacio Ramonet, para definir alguns dos efeitos dos paradigmas da comunicação e do mercado convertidos em sustentáculos do edifício sociopolítico contemporâneo. Assemelhado à frieza das estátuas borgeanas, esse novo paradigma consagrou o modelo do arquipélago: para cinco bilhões de humanos “apenas 500 milhões vivem confortavelmente, enquanto quatro bilhões e meio permanecem na necessidade”[3].
Se todos esses perdedores não conseguem se articular para tomar de assalto o castelo, resta ao pensamento complexo estabelecer um horizonte possível de neo-utopias, realistas sempre, que venham a redesenhar novos cenários sociais para o mapa do mundo. A tarefa é hercúlea e demanda redobrada energia cognitiva e biopolítica. Eric Hobsbawn, em entrevista acerca dos desatinos do homo globatus, reconheceu que, embora o século XX tenha sido considerado como o século americano, é duvidoso supor que os EUA venham a perpetuar sua hegemonia fundada no controle da economia global. Hobsbawn considera um equívoco a ambição americana de exercer o papel de polícia do mundo e de controlar uma nova ordem mundial, mesmo que o poder das corporações da informática e da biotecnologia seja a cada dia ampliado.
Se é forçoso reconhecer que a despolitização e a desideologização crescentes têm redundado no avanço do conservadorismo de direita em todo o planeta, ainda é prematuro admitir-se o fim da história ou o fim da política, como pretendem algumas cassandras que proliferam nas ciências humanas. “Creio (reitera Hobsbawn) que a despolitização de grandes massas de cidadãos é um grande perigo, porque pode produzir a mobilização de formas totalmente alheias ao modus operandi de qualquer tipo de política democrática”[4].
Repolitizar implica em religar, civilizar idéias, refundar noologias insurgentes fundamentadas no desenvolvimento sustentável, desencadeadoras de formas de solidariedade e responsabilidade. Se conseguirem firmar-se no cenário planetário, certamente coibirão as tendências bestializadoras do pensamento único, neoliberal, que instalou o fundamentalismo do mercado em todas as ações humanas.
Pela avaliação de certos intelectuais demasiadamente identificados com pulsões de homogeneização, os efeitos mais visíveis da globalização sintetizam-se numa ‘cultura da satisfação’ válida, factível e homogeneizadora. O que não conseguem enxergar são os pactos e compromissos escusos firmados pela ciência e pela política, que redundaram numa ‘economia de apartheid’ repleta de exclusões, particularismos, regressões. Joaquín Estefanía, em uma de suas crônicas publicadas no jornal espanhol El País, ao refletir sobre a debilidade sócio-econômica e intelectual contemporâneas, sustentou que “a política liberal produz desigualdades materiais ao mesmo tempo em que proclama a igualdade como direito imprescindível do homem”[5].
Enfrentar essa contradição exige revolta e ética redobradas, e é no interior desse binômio que creio poder ser problematizada a identidade planetária futura destituída de xenofobias, revanchismos, relativismos e falsos perspectivismos. Em essência polimorfa e politeísta, essa identidade seria capaz de restaurar o “homem genérico”, promover uma reforma das condições subjetivas e objetivas da vida e instaurar a ‘solidariedade dos estarrecidos’. Com isso, valores públicos, direitos e liberdades passam a ser circundados por princípios transculturais e transpolíticos de hominização e humanização. Esse estarrecimento, tematizado de modo contundente por Jan Patocha, se edifica sempre na incerteza e “é justamente aí que reside sua frente silenciosa… mesmo onde a Força dominante tenta dominá-la pelos meios de que dispõe. Esse tipo de solidariedade não teme a impopularidade, mas, ao contrário, lança-Ihe um desafio sem palavras”[6].
Não temer a impopularidade foi a força cognitiva que animou muitos dos dissidentes deste planeta a refletirem sobre a condição humana. Exílicos porque localizados, voluntaria ou involuntariamente, nas margens dos sistemas de repressão e culpa, tiveram coragem redobradada para tematizar as possibilidades da revolta, a reposição da dignidade, a integridade da consciência.
Ismail Kadaré, em sua elegia fúnebre sobre o Kosovo, captou superlativamente essa dimensão trágica que o aprendizado do medo traz consigo. Desde o século XIV, quando sérvios, albaneses, bósnios e romenos foram massacrados pelos otomanos, a ferida nunca se cicatrizou e o trabalho de luto não se completou. Constatando essa temporalidade sem esperança, tudo parece conduzir a uma intransitividade sócio-histórica sem precedentes: “O tempo passou, cinco séculos se escoaram desde aquele dia que me viu cair… Eu ainda estou aqui, sozinho em meu turbé, sob a pequena chama desse lúgubre pavio. Assim como o estrondo do mar, o alarido que produzem é contínuo”[7].
O Brasil passou por 15 anos de ditadura militar, entre 1964 e 1979. Cindiu a nação em dois córregos de repressão e dor, puniu seus dissidentes com tortura e morte, realizando uma limpeza ideológica sem precedentes na história da América Latina. A limpeza étnico-cultural, porém, já havia sido feita há quinhentos anos, perpetrada sobre milhões de índios, hoje reduzidos a alguns milhares de resistentes, que chegam até a expressar um instigante aumento demografico, a despeito da voracidade do ‘ogro filantrópico’, essa imagem fantástica de Otávio Paz utilizada para definir o apequenamento e a mediocridade dos estados latinoamericanos. “As sociedades latinoamericanas são a própria imagem da estranheza: nelas se justapõem a Contra-reforma e o liberalismo, a fazenda e a indústria, o analfabeto e o literato cosmopolita, o cacique e o banqueiro”[8].
Pensar a revolta exige desentranhar retornos, realizar anamneses e deslocamentos. Por isso, o sentido original da palavra envolve sempre interrogação, renovação, renascimento. Longe de apresentar um conteúdo meramente abstrato, acionar esses três exercícios cognitivos e biopolíticos requer urgência urgentíssima e isso porque a revolta nunca pode ser censurada nas democracias abertas[9]. ‘Eu me revolto, logo nós somos’, palavras de Albert Camus, convertem-se em palavras de ordem. Saturadas de complexidade, talvez venham a substituir o penso, logo existo, cartesiano. Qeustionam a liberdade, percebendo-a como revolução permanente que reconhece a multiplicidade e a estrangeiridade entranhadas em cada um de nós.
Ao distinguir os crimes da paixão dos crimes da lógica, Camus exibiu o absurdo do espetáculo da desrazão no final da primeira metade do século passado. Para enfrentar esse descalabro, o revoltado de hoje deverá saber dizer não, sem rancores ou ressentimentos, mas sempre com determinação. É bem verdade que houve revoltados por excelência, como Dostoiévski e Nietzsche, mas o ‘conto filosófico’ O Estrangeiro, ou o caso Mersault como ficou conhecido, exibe, de modo exemplar, a dialogia entre revolta e morte. É preciso encontrar a justa medida das palavras e das coisas para que a revolta possa eclodir e produzir reorganizações civilizatórias, e isso porque, para o pensamento revoltado, razão e desrazão não se excluem. “Essa lei da medida estende-se igualmente a todas as antinomias do pensamento revoltado. Nem o real é inteiramente racional, nem o racional é inteiramente real. O desejo de unidade não exige somente que tudo seja racional. Ele quer ainda que o irracional não seja sacrificado”[10].
Longe de ser entendida como panacéia para todos os males, a revolta traz consigo uma pedagogia da existência que liberta o pensamento e instaura a razão aberta, sem niilismos desesperados, mas com lucidez e esperanças amadurecidas. Essa reconquista da liberdade começa em cada um de nós, em nossas experiências mais íntimas, por um ato de descentramento de tempo e local. Mais do que um mero desenraizamento cultural, que diz não a quaisquer absolutismos humanos ou divinos, essa experiência representa um dépaysement, no sentido empregado por Tzvetan Todorov, um sentimento de deriva que, no lugar de cair nas tentações reacionárias da mera exaltação das diferenças, busca uma universalidade capaz de recombiná-las de modo menos excludente e irredutível[11]. Esse meta ponto de vista acrescentará às escrituras revoltadas de poetas, romancistas e uns poucos homens de ciência, partituras-revolta, uma espécie de sexto sentido da sociedade, que prescrevem o re-torno exortado por Kristeva “às pequenas coisas: re-volta infinitesimal para preservar a vida do espírito e da espécie”[12].
Convertida em fetiche da modernidade, principalmente depois que a brecha aberta em 1968 não conseguiu produzir reorganizações sócio-culturais de grande magnitude, a revolta cidadã deverá necessariamente desembocar numa ética civil planetarizada que articule pequenas e grandes diferenças e instaure a ‘Terra-Pátria’, tantas vezes exortada nos escritos de Edgar Morin[13]. Ética ou caos, eis o desafio que nos envolve. Para resgatarmos as potencialidades da vida e não sucumbir à floresta de símbolos criada pelos agentes da razão instrumental, é preciso formatar uma política de resistência, complexa, que reverta o furacão da fragmentação delirante. A reforma radical do pensamento contém um projeto biopolítico que nega o paradigma do progresso unidimensional e instaura o paradigma da preservação, ecológico, ecocêntrico.
Não creio que o único caminho para se garantir esse universalismo pragmático seja o da argumentação exercida em comitês de ética, ou em foruns mais amplos, conduzidos por vanguardas outorgadas. Antes de mais nada, é preciso deixar-se contaminar pelo ‘princípio da incerteza racional’ e restabelecer novos princípios para a educação do futuro. A ‘ética da compreensão planetária’ ocupa papel de destaque nessa nova paideia, e isso porque saberes éticos não podem ser concebidos como meras proposições abstratas, mas como atitude deliberada de todos aqueles que acreditam ainda ser possível sociedades democráticas abertas se solidarizarem, mesmo com a aspereza do caminho e o desânimo dos caminhantes[14].
Resta saber como passar do plano axiomático para os devires práticos que comportam fluxos e linhas de fuga que nos imobilizam e desassossegam. Talvez os viajantes literários, marcados pela ausência de qualquer vocação prometeica, forneçam algumas preciosas indicações para o problema. Ao preferirem o nomadismo imaginário do poeta ao sedentarismo real dos cientistas correm pela terra sem limites e rancores. Mesmo considerada como descartável, a correlação de forças entre arte e política precisa ser resgatada no sentido da teckné grega, que não separava conhecimentos e sentimentos. Ambas “são apenas contrapartidas uma da outra, as duas correntes fundamentais e eternas da mesma política universal”[15]. Essas palavras sábias de Almada Negreiros, escritas em 1935, exibem sintomas claros acerca da necessidade de alguma intervenção diante da gravidade atual dos acontecimentos, seja ela realizada individualmente ou por um ‘aluvião místico do coletivo’.
Dentre os muitos caminhantes que intervieram contra a imobilidade e a melancolia dela decorrente, destaco apenas um: Alejo Carpentier. Ao refletir sobre a América Latina, resgatou o poder imaginário dos escritores como agentes transformadores da história, ainda que destituídos de qualquer força decisória. A era imaginária que desenham em seus textos desvincula-se da relação linear entre causa e efeito, ao poetizarem a história real e se fixarem nos arquétipos da memória coletiva da humanidade e do cosmo. Essas escrituras se assemelham a forças cósmicas irreversíveis, cuja luminosidade jamais se extinguirá, podendo, a qualquer momento, produzir bifurcações e dissiplações, reorganizar novas configurações noológicas.
O Século das Luzes[16] exibe os dilemas universais que envolvem a conciliação das velhas ordens com as neoutopias. O entrecho do romance transcorre em 1791. A velha ordem é representada por um mercador que deixa sua fortuna a dois filhos e ao sobrinho Esteban. A nova ordem, revolucionária, é representada pela chegada ao Caribe de Victor Hugues, francês incumbido de abolir a escravidão. Em sua bagagem, encontram-se a máquina tipográfica e a guilhotina, símbolos inequívocos da modernidade. Esteban se afeiçoa ao estrangeiro e se incumbe de mostrar-lhe as belezas tropiciais. Hugues conquista Guadalupe, liberta e alfabetiza os escravos, guilhotina os dissidentes, combate os piratas. A revolução se degenera e a pulsão totalitária acaba se impondo. Desiludido, Esteban volta para Cuba e Hugues para a Guiana Francesa, descrente de quaisquer ideários revolucionários. Com a escravidão restabelecida, Esteban e a prima fogem para Espanha, morrendo trespassados pelos exércitos napoleônicos. Do destino de Hugues, que aparece no apêndice do livro, pouco se sabe, a não ser que ele acabou sendo submetido a um conselho de guerra, em Paris, acusado de entregar a paradisíaca Guadalupe à Holanda. Acaba absolvido por falta de provas, voltando à política e, pairam dúvidas, se morava mesmo na cidade-luz, quando da queda de Napoleão. Segundo renomados pesquisadores, morreu de câncer em 1822.
Pouco importa saber se Victor existiu ou não. Sua função poderia ser comparada a de um operador totêmico que, ao acionar novas idéias, enreda-se em forças e energias arquetípicas, projeta novas atitudes mentais, exorciza recalques inconscientes. Aqui reside o intento do herói. Sua inglória tentativa de introduzir as luzes na América Central, pode ser visto como um retumbante fracasso, de caráter punitivo, mas também como sinal de uma grande e necessária ruptura, capaz de reafirmar a metáfora do ‘jardim comum da humanidade’ e postular a universalidade da complexidade em todos os domínios da vida.
Sejamos otimistas para o presente milênio. Convoquemos a primeira internacional dos cidadãos do planeta, a ser comandada por um exército de jardineiros que consideraram GAlA uma força psíquica e espiritual capaz de repor a cena primordial da unidualidade planetária. Bruce Chatwin, obcecado pelo nomadismo e pelos mitos aborígenes da Austrália Central, repôs essa neoutopia que os caminhantes trazem consigo afirmando que “todos os Grandes Mestres pregaram que o Homem, originalmente, era um “errante pelo deserto sêco e árido deste mundo” (palavras do Grande Inquisidor de Dostoiévski) e que, para redescobrir sua humanidade era preciso despojar-se das amarras e tomar a estrada”[17].
Ao refletir recentemente sobre os desafios de nosso tempo, Fritjof Capra[18] precisou a urgência de uma alfabetização ecológica interdependente, e isso porque em qualquer ecossistema nunca há desperdícios, pois o que sobra de uma espécie converte-se em alimento de outra. Essa alfabetização, fundada na religação dos conhecimentos e na complexidade, propicia a criação de um ecodesign, processo no qual nossas necessidades são interconectadas aos padrões e fluxos da teia geral da vida. Para isso, tenhamos a coragem e a audácia de propor um contrato ético para todos os seres vivos iluminado pela restauração da responsabilidade, pela auto-ética, pela magnanimiade, pela prática da atenção e, mais do que nunca, pela impermanência das experiências, sejam elas políticas, sociais, éticas, amorosas ou trágicas. Restauração como palavra de ordem, Religação como fundamento ético-pedagógico, Esperança como utopia para a humanidade da humanidade.
[1] Clive Ponting. The Pimlico History of the twentieth century. London, Pimlico, 1999, p. 32.
[2] Jorge Luiz Borges. História Universal da Infâmia. Vários tradutores. Em Obras Completas, v. 1, 1923-1949. São Paulo, Globo, 1998, p. 371.
[3] Ignacio Ramonet. La planète des désordres. Manière de Voir 33, Le Monde Diplomatique, fev. / 1997, p. 7.
[4] Eric Hobsbawn. El siglo XX visto por un maestro del pasado. El País, Babelia, 11/03/2000, p. 5.
[5] Joaquín Estafanía. Contra el pensamiento único. Madrid, Taurus, 1998, p. 44.
[6] Jan Patocha. Essai herétiques sur la philosophie de l’histoire. Lagane, Verdier, 1981, p. 45.
[7] Ismail Kadaré. Três cantos fúnebres para o Kosovo. Trad. Vera L. dos Reis. São Paulo, Objetiva, 1999, p. 113.
[8] Otávio Paz. O ogro filantrópico. História e Política, 1971-1978. Trad. Sonia Régis. Rio de Janeiro, Guanabara, 1987, p. 101.
[9] Julia Kristeva ponderou que sociedades globalizadas que censuram a revolta preparam sua própria morte. Cf. Savoir incarner la revolte dans l’individuel. Magazine Littéraire, nº 366, maio / 1998.
[10] Albert Camus. O homem revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro, Record, 1996, p. 33.
[11] Tzvetan Todorov. L’homme depaysé. Paris, Calmann-Lévy, 1998.
[12] Julia Kristeva. L’avenir d’une révolte. Paris, Calmann-Lévy, 1998, p. 18.
[13] Edgar Morin / Anne Brigitte Kern. Terre-Patrie. Paris, Seuil, 1993; Edgar Morin / Sami Naïr. Une politique de civilisation. Paris, Arléa, 1997.
[14] Edgar Morin. Les sept savoirs nécessaires à l’éducation du futur. Paris, UNESCO, 1999.
[15] Almada Negreiros. Arte e Política. Em Obra Completa, vol. único, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1997, p. 857.
[16] Alejo Carpentier. Le siècle des lumières. Paris, Gallimard, 1977.
[17] Bruce Chatwin. O rastro dos cantos. Trad. Bernardo Carvalho. São Paulo, Cia. das Letras, 1996, p. 225.
[18] Fritjof Capra. The challenge of our time. Resurgence, 202, nov/dec 2000, pp. 18/20