Marco Antonio Coutinho Jorge: ARTE E TRAVESSIA DA FANTASIA

 

ARTE E TRAVESSIA DA FANTASIA

 

 

 

Marco Antonio Coutinho Jorge[1]

 

 

 

Para Freud, desde os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), existe apenas um único conceito de fantasia, que apresenta três localizações psíquicas diferentes: consciente, pré-consciente e inconsciente. As fantasias conscientes compreendem os sonhos diurnos ou devaneios,[2] os chamados “romances familiares”, assim como muitas criações literárias. As fantasias inconscientes representam aqueles elementos que estão na base dos sintomas histéricos, ponto que Freud desenvolveu especialmente em dois artigos escritos naquele período que consideramos como o “ciclo da fantasia”,[3] situado precisamente entre 1906 e 1911: Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade (1908) e Algumas observações gerais sobre o ataque histérico (1909).

 

Ambas as fantasias, conscientes e inconscientes, estão intimamente relacionadas para Freud e, nesse sentido, a oposição introduzida por Melanie Klein e desenvolvida por Susan Isaacs, entre phantasia (phantasy) inconsciente e fantasia (fantasy) consciente, perde sua legitimidade dentro da teoria freudiana. Pois os dois registros da atividade fantasística estão presentes no processo do sonho: a fantasia consciente participa do remanejamento do conteúdo manifesto do sonho que constitui a elaboração secundária, ao passo que a fantasia inconsciente se inscreve na origem mesma da formação do sonho.

 

No artigo metapsicológico intitulado O inconsciente (1915), Freud dá uma definição da fantasia que confirma suas concepções precedentes: ela é caracterizada por sua mobilidade e é apresentada como o lugar e o momento de passagem de um registro da atividade psíquica para o outro, sendo irredutível a um único desses registros, consciente ou inconsciente. No mesmo ano, igualmente, Freud introduz o conceito de fantasia originária no artigo sobre Um caso de paranóia que contradiz a teoria psicanalítica da doença (1915), conceito que será desenvolvido amplamente na Conferência introdutória XXIII e no estudo clínico do Homem dos Lobos. É bastante digno de nota que este conceito tenha sido introduzido por Freud no mesmo ano em que menciona, igualmente pela primeira vez, em seu artigo metapsicológico sobre o Recalque (1915), o conceito de recalque originário. Voltaremos a esse ponto adiante.

As fantasias originárias são, para Freud, as fantasias da cena primária, da castração e da sedução. Elas têm a ver com a origem da história individual do sujeito. Para Freud, a universalidade dessas fantasias está relacionada, por um lado, com a sua transmissão filogenética, e, por outro, com o fato de que tais fantasias representariam determinadas realidades dos primórdios da família humana. As fantasias originárias, ou protofantasias, como são também denominadas, estão sempre relacionadas à problemática das origens e pretendem fornecer alguma espécie de representação para o enigma da origem, tal como o fazem os mitos coletivos, se lembrarmos igualmente da preciosa definição que Lacan fornece do mito como sendo “a tentativa de dar forma épica ao que se opera da estrutura”.[4] Cada uma dessas fantasias originárias se relaciona com determinado aspecto das origens: a da cena primária, com a origem do indivíduo; a da sedução, com a origem da sexualidade; a da castração, com a origem da diferença sexual.

 

Mas o que é preciso ressaltar, a nosso ver, é que em todas as fantasias originárias, assim como em todas as fantasias, o denominador comum diz respeito ao enigma da sexualidade. Avancemos aqui o ponto de partida de nossos desenvolvimentos: a fantasia inconsciente é o axioma de base da estrutura psíquica, axioma que se inscreve para cada sujeito como uma forma particular para fazer face ao real, ao não-saber inerente à diferença sexual.

 

 

RECALQUE ORIGINÁRIO E FANTASIA FUNDAMENTAL

 

 

Há uma relação entre recalcamento originário e fantasia fundamental que merece ser precisada. O recalcamento originário é uma operação que produz uma perda de gozo. Segundo a distinção estabelecida pela primeira vez por Lacan em sua apresentação da edição francesa das Memórias do presidente Schreber, há dois sujeitos: o sujeito do gozo e o sujeito do significante. Lacan aí se refere à “polaridade – a mais recentemente promovida – do sujeito do gozo e do sujeito que o significante representa para um significante que é sempre outro”.[5]

 

Lacan nos lembra que o gozo é o que revela “a origem sórdida”[6] de nosso ser. O sujeito do gozo, na neurose, sofre a operação do recalcamento originário, através da qual ele entra na linguagem e advém como sujeito do significante. Tal operação é responsável pela extração do objeto a da realidade psíquica, produzindo simultaneamente o advento de um “pouco de realidade” – segundo a expressão de André Breton, em seu romance Nadja, valorizada por Lacan – para o sujeito e a perda do gozo absoluto enquanto um real doravante inatingível. É nesse sentido que a fantasia é o princípio de realidade para Freud. A fantasia é o efeito da instauração da falta-a-ser e a perda da qual ela é efeito será o móbil dessa aspiração à completude que lhe é inerente.

 

Vê-se, portanto, que a definição do real como impossível está relacionada, para Lacan, ao gozo. Na operação do recalque originário, o significante Nome do Pai vem substituir o desejo da mãe (em seu duplo genitivo, subjetivo e objetivo) e funciona para o sujeito como um Não[7] ao gozo absoluto – doravante considerado como impossível – e um Sim simultâneo de possibilidade de acesso ao gozo fálico, parcial, que é o gozo propriamente dito sexual. O sujeito do gozo é assim substituído pelo sujeito do significante, o qual tem também, por sua vez, um certo acesso ao gozo, mas um gozo parcial, recortado pelos significantes e emoldurado pela fantasia, o que Lacan nomeia de gozo fálico.

 

A conseqüência disso é que o objeto a, enquanto radicalmente perdido, é o objeto da fantasia que passa a sustentar o desejo. Para Lacan, o desejo é sempre sustentado pela fantasia. Se o desejo é, em sua essência, da ordem da falta, a fantasia é a estrutura que enquadra, emoldura esta falta num certo limite, numa certa “janela para o real”[8]. Se o desejo é a falta enquanto tal, a fantasia é o que sustenta esta falta radical ao mesmo tempo em que indica ilusoriamente “o que falta”. Há falta, diz o desejo. É isso que falta, diz a fantasia.

 

O fato de que Freud tenha, assim, introduzido ambos os conceitos – recalque originário e fantasia originária – no mesmo ano e em dois artigos diferentes, talvez nos ensine que (e é esta a hipótese que estamos tentando elaborar) a instauração da fantasia fundamental é o principal efeito produzido pelo recalcamento originário: se a castração introduz um limite ao gozo, ela instala uma forma particular para cada sujeito deparar-se com o real, ao mesmo tempo em que constitui para cada um uma realidade psíquica que é a fantasia. Vê-se que não se pode prescindir da distinção conceitual entre a realidade e o real, distinção que foi estabelecida por Lacan a partir de certas indicações e problemas levantados por Freud.

 

Uma observação do cotidiano, que me foi comunicada há muitos anos atrás, me parece ser a mais excelente exemplificação do que significa esta perda de gozo de que fala Lacan. Um menino de seis anos de idade, ao observar seu irmãozinho de leite mamando no peito de sua mãe, diz a ela: “Mamãe, eu também quero mamar!”. A mãe lhe responde: “Mas você já mamou!”. E ele exclama: “Mas eu não sabia!”. É dessa disjunção radical entre saber e gozo que fala Lacan. O menino, ao observar o irmão, quer voltar ao gozo do seio materno perdido, mas sabendo disso! Acontece que esse retorno não é possível: aonde há linguagem, não há gozo, e aonde há gozo, não há linguagem. O sujeito pode, portanto, afirmar que ele vai gozar no futuro, ou, então, que ele gozou no passado, mas jamais que ele o faz no presente. No aparelho psíquico, no mundo da linguagem, o gozo é sempre aspiração ou lembrança.

 

 

A REALIDADE É FANTASÍSTICA

 

 

Freud não chegou facilmente a sua concepção sobre a fantasia. Como já fizemos uma análise desse percurso freudiano em outro artigo[9], vamos apenas lembrar aqui alguns momentos desse percurso. É preciso salientar de início que a emergência mesma do conceito de inconsciente está ligada à evidenciação, por Freud, da ação inconsciente da fantasia. Freud permaneceu durante muito tempo preso à teoria da sedução e do trauma relatados por suas pacientes histéricas, na medida em que lhe faltava a concepção da fantasia. Quando esta concepção lhe ocorreu, um passo essencial foi dado no sentido de indicar a dimensão do inconsciente. Este momento produziu uma reviravolta profunda na elaboração freudiana, uma vez que Freud pôde se deslocar da concepção do trauma sexual para a do sexo traumático. Lacan valorizou muito especialmente este momento da obra freudiana e falou da noção de trauma como contingência.

Durante bastante tempo, Freud se debateu entre a influência dos fatores hereditários, que ele queria afastar de sua concepção da origem das neuroses, e a dos fatores acidentais e experiências adquiridas. Quando ele se deparou com a perda da importância da sedução – e, logo, dos fatores acidentais e traumáticos na origem das neuroses -, isso significava que os fatores constitucionais e hereditários iriam se impor uma vez mais como estando na origem dos sintomas histéricos, concepção da qual precisamente ele fazia todo o esforço para se afastar. Mas Freud sublinha num artigo escrito imediatamente após os Três ensaios, no qual ele nos relata os diferentes passos de todo esse percurso, intitulado Meus pontos de vista sobre o papel desempenhado pela sexualidade na etiologia das neuroses (1906), que para ele o constitucional é da ordem de uma “disposição neuropática geral”. Essa espécie de torção operada por Freud na oposição entre o hereditário e o adquirido está na base de diversas concepções psicanalíticas fundamentais posteriores: há o hereditário e o constitucional, sim, mas eles são universais e não constituem mais o apanágio apenas de certas doenças.

Essa assim nomeada “disposição neuropática geral” é a maneira freudiana de indicar a problemática do furo real constitutivo do inconsciente, o troumatisme, palavra-valise que, segundo Lacan, nos sugere que o verdadeiro trauma é o furo. Lacan afirmou isso de diferentes modos, por exemplo, quando disse que o inconsciente é a verdadeira doença mental do homem. A falta de inscrição da diferença sexual no inconsciente – ponto de não-saber que constitui o núcleo em torno do qual o saber inconsciente órbita – induz por ela mesma a necessidade de construção da fantasia por parte do sujeito. Tal fantasia é construída em íntima relação com o enigma do desejo do Outro, o Che vuoi? cuja questão será respondida pelo sujeito com uma construção fantasística primordial, que constitui uma verdadeira matriz a partir da qual o sujeito vai desenvolver todas as suas relações com seus semelhantes e o mundo a sua volta.

Pouco a pouco, a função primordial da fantasia como constitutiva da realidade psíquica surge para Freud em sua plenitude, e esta apreensão atinge seu ponto máximo nos dois artigos de 1923, Neurose e psicose e A perda da realidade na neurose e na psicose, nos quais ele se choca com o caráter problemático da noção de realidade. Esta estará sempre, no fundo, submetida à fantasia na neurose e ao delírio – segundo os próprios termos de Freud, uma espécie de fantasia que invade a realidade – na psicose.

A fantasia constitui a realidade psíquica para cada sujeito, ela mediatiza o encontro do sujeito com o real. Ela é, assim, uma espécie de tela protetora para o sujeito e se ela constitui para Lacan um suporte do desejo é no sentido em que ela estabiliza, ela fixa o desejo do sujeito numa relação com determinado objeto a, para fazer tela à das Ding. É nesse sentido que a fantasia constitui uma janela para o real: S  ^  a —–> das Ding.

 

Dando profundidade às concepções clínicas freudianas, Lacan parece outorgar à fantasia inconsciente um estatuto fundador para o sujeito. A falta-a-ser inerente à estrutura subjetiva diz respeito à não-inscrição da diferença sexual e vem a ser preenchida precisamente pela fantasia inconsciente, modo primordial pelo qual o sujeito mediatiza seu encontro com o real e constitui sua realidade psíquica, particular e não objetiva. A realidade material, ou dita objetiva, não é algo comum para todos os sujeitos falantes: cada sujeito estabelece uma relação com o mundo e com os outros por meio de uma fantasia particular, advinda para ele no momento mesmo de sua constituição e tendo, portanto, uma íntima relação com o recalcamento originário. O conceito lacaniano de real vem de certa forma retificar todos os problemas que a noção freudiana de realidade apresenta. Mas talvez possamos indicar em Freud alguns surgimentos embrionários do conceito lacaniano de real, como numa passagem do texto de 1938, Esboço de psicanálise, na qual ele afirma que “a realidade permanecerá para sempre ‘impossível de ser conhecida’”.[10]

 

É necessário sublinhar igualmente a função defensiva da fantasia, modo pelo qual o sujeito impede a emergência de um episódio traumático e se detém numa determinada imagem. Trata-se de uma espécie de imagem congelada, um modo de defesa contra a castração. Lacan inscreve a fantasia no quadro de uma estrutura significante e, assim, ela não pode ser reduzida ao registro do imaginário.

 

Lacan introduz também a noção de fantasia fundamental como uma estrutura geral situada mais-além da diversidade das fantasias, que seria – mais do que destacada na análise, como as fantasias subjacentes aos sintomas -, construída ao final da análise. O fim da análise consistiria na travessia da fantasia, travessia que ocasionaria um remanejamento das defesas e uma modificação da relação do sujeito com o gozo. Nisso residiria para Lacan a verdadeira eficácia de uma análise.

 

Em 1957, Lacan elaborou com seu grafo do desejo um matema da lógica da fantasia, no qual ele situa o assujeitamento originário do sujeito ao Outro numa relação que traduz uma questão sem resposta: Che vuoi?: Que queres? O matema S ^ a formula a relação entre o sujeito do inconsciente, sujeito barrado, dividido pelo significante que o constitui, e o objeto a, objeto inapreensível do desejo que remete a uma falta originária, um vazio do lado do Outro. Desenvolvemos a hipótese segundo a qual há uma relação intrínseca e particular entre a fantasia e o gozo: a fantasia é uma forma de possibilitar o acesso ao gozo fálico do objeto, perdido por definição.

 

Lacan elabora sua distinção entre necessidade, demanda e desejo observando que é o outro, a mãe ou seu substituto, que confere sentido à necessidade orgânica que o bebê expressa sem qualquer intencionalidade. A criança se acha referida ao discurso desse outro, cuja posição privilegiada contribui para a constituição do Outro. A necessidade se transforma em demanda e a passagem da sucção natural do leite como alimento para o ato pleno de prazer de sugar o seio tem um gozo inicial que jamais poderá ser reencontrado. Desse modo, o Outro originário permanece impossível de ser alcançado e Lacan o situará no seminário sobre A Ética da psicanálise como das Ding, a Coisa impossível situada fora de toda e qualquer possibilidade de significação.

 

Lacan estabelece uma distinção entre prazer e gozo, pois o gozo apresenta uma tentativa constante de ultrapassar os limites do princípio de prazer, numa busca incessante, repetitiva – daí Freud ter estabelecido, em Mais-além do princípio de prazer, uma relação interna entre a compulsão à repetição e a pulsão de morte -, da Coisa perdida, que falta no lugar do Outro e representa por isso uma causa de sofrimento. Contudo, o sofrimento jamais vai eliminar completamente a busca do gozo situado mais-além do princípio de prazer e, logo, vinculado à pulsão de morte. Por isso, Lacan vincula como verdadeiramente equivalentes o mal sadiano e o bem kantiano, pois o gozo se sustenta pela obediência do sujeito a uma injunção que o leva a se destruir na submissão ao Outro e ao abandono de seu desejo.

 

Lacan faz uma releitura do mito da horda primitiva, introduzido por Freud em Totem e tabu, para mostrar que o pai originário, não submetido à castração, é o suporte da fantasia de um gozo absoluto. Lacan o chama de hommoinzin, neologismo que condensa homme moins un, literalmente homem menos um, pois o pai da horda é o au moins un, ao menos um. Morto, assassinado por seus filhos, ele será o pai simbólico para Lacan, que funda a possibilidade de existência do conjunto dos outros homens. É nesse sentido que só há gozo para o homem enquanto gozo fálico, limitado, submetido à ameaça da castração. O gozo fálico constitui a identidade sexual entre os homens.

 

Do lado das mulheres, não há o equivalente do pai originário, não há hommoinzin que escapa à castração. O gozo do Outro não é mais concebido como sendo exclusivo do pai originário, ele é esperado e se revela igualmente impossível para as mulheres que, no entanto, não constituem objeto de uma interdição da castração. É nesse sentido que o gozo feminino se torna sem limites e adquire a consistência de um gozo suplementar e não complementar. Lacan funda assim a teorização de um gozo feminino isolado de qualquer referência anatômica ou biológica e introduz na questão da diferença sexual – classicamente concebida em torno da oposição atividade/passividade para elaborar a distinção entre masculino e feminino -, a diferença entre gozo fálico e gozo do Outro.[11]

 

A fórmula do discurso psicanalítico é, em si mesma, congruente com a elaboração lacaniana sobre o fim da análise como a travessia da fantasia, uma vez que na fórmula do discurso psicanalítico a fantasia ocupa o primeiro plano: a —> S. O psicanalista é situado aí como o semblante do objeto a, que se dirige ao outro enquanto sujeito causado pelo enigma desse objeto. O silencio do analista é congruente com a ocupação desse lugar de semblante do objeto a e presentifica o furo que anima o desejo e o discurso do analisando.

 

 

DUCHAMP E DA VINCI: ARTE E TRAVESSIA DA FANTASIA

 

 

Ainda que encontremos produções artísticas que visam oferecer uma compensação da falta a partir de uma representação que preencha esta falta, a arte, em sua essência, parece ocupar uma posição particular em relação à fantasia, a de evidenciar a falta inerente à estrutura do sujeito. Toda a elaboração empreendida por Marcel Duchamp, que acabou por produzir uma grande reviravolta na arte do século XX e dar-lhe novos rumos – através de sua crítica ao que ele chamava ironicamente de arte “retiniana” -, parece-nos advir dessa percepção de que a arte, em sua motivação maior, isto é, na essência do ato criativo, é demonstração do real e da falta que subjazem a toda e qualquer fantasia. Se a fantasia é uma construção simbólico-imaginária, a base sobre a qual ela se constrói é eminentemente real, o vazio do real.

 

Duchamp pôde ressaltar o caráter inconsciente de toda criação artística e denominou de “coeficiente artístico” precisamente essa diferença entre “a intenção e a sua realização, uma diferença de que o artista não tem consciência”. Tal coeficiente “é como que uma relação aritmética entre o que permanece inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não-intencionalmente”.[12]

 

Duchamp parece ter se esmerado em demonstrar essa tarefa inerente à arte em sua produção. Por exemplo, com seus ready-mades, um urinol, uma roda de bicicleta, um porta-garrafas perdem o significado original (funcional, sim, mas isso pouco importa para o que queremos ressaltar) e adquirem um relevo estético que lhes era negado até então. Tal ato de Duchamp destaca a dimensão inerente ao ato de criação para além do objeto que é criado através desse mesmo ato. Ele mostra o ato. O ato do artista se situa além da imagem que se produz e, por isso, o ready-made exibe este ato e nos faz ver o que não é visível no objeto, mas que esteve na origem de sua própria constituição.

Sua concepção do ready-made vai de par com sua idéia de que o espectador participa do ato criador, que não se encerra com a obra e vai mais além dela. A arte, diz ele, “é um produto com dois pólos: há o pólo daquele que faz uma obra e o pólo daquele que a olha. Dou aquele que a olha tanta importância quanto aquele que a faz”.[13] Duchamp sublinha que o espectador como que repete este ato criador e, por isso, é tão comum na história da arte que os artistas sejam valorizados e apreciados muito tempo depois. Seus ready-mades revelam o pólo do espectador que é suposto realizar igualmente um ato criador.

 

Do mesmo modo, a porta que Duchamp confeccionou quando morava em Paris, rue Larrey, 11, apresenta-se como um objeto que, desqualificado de sua função original, transfere ao espectador toda a tensão criativa inerente ao mais simples objeto utilitário. Tal porta apresentava a singular característica de abrir e fechar – ao mesmo tempo – diferentes cômodos: abrindo um, ela fechava o outro, e vice-versa. Porta heracliteana: o caminho que sobe e o que desce são um único e mesmo. Ou, talvez, aquela porta de que nos fala T. S. Eliot: “Ao longo das galerias que não percorremos em direção à porta que jamais abrimos para o roseiral”.

 

Nessa mesma direção, também heracliteanamente, Duchamp “amava o acaso”.[14] A obra à qual dedicou mais de dez anos de sua vida, o Grande vidro, ficou pronto quando, ao ser transportado, quebrou-se de uma maneira tal que ele acreditou, só então, que ela estava finalmente pronta.

 

A sexualidade e a equivocidade inerente a ela surgem freqüentemente em Duchamp, por exemplo, quando ele se traveste na figura de Rrose Sélavy, onde é preciso ler “Eros c’est la vie” – Eros é a vida. Os títulos de seus trabalhos são igualmente reveladores dessa profunda ambigüidade característica da estrutura da linguagem. Mas Duchamp considerava a sua vida e a maneira pela qual dispunha de seu tempo como a sua grande criação: “Gosto mais de viver, de respirar do que de trabalhar […]. Se você quiser, minha arte seria a de viver; cada segundo, cada respiração é uma obra que não está inscrita em nenhum lugar, que não é visual nem cerebral. É uma espécie de euforia constante”.[15]

 

Em suas telas, Leonardo da Vinci apresenta um determinado elemento que valorizamos igualmente nessa mesma direção: muitas de suas telas apresentam algum personagem com a mão apontando, indicando algo que está para além do espaço da própria tela, algo que não se pode ver, mas que parece, no entanto, constituir o núcleo mesmo da tela. Para além da representação, do retiniano, o ato, o real, o impossível de ser evidenciado. Lacan se refere ao dedo indicador de São João Batista, última pintura de Da Vinci, como sendo a estrutura da interpretação em psicanálise: sua virtude alusiva.

 

 

A TRAVESSIA DE EDWARD HOPPER

 

 

Um artista americano chamado Edward Hopper traçou insistentemente em sua pintura a solidão do sujeito situado na margem, na beira, no umbral, no limiar em relação ao real. Um poderoso silêncio pode ser escutado em suas telas. Revisitando seus trabalhos, coloco a seguinte indagação: será Hopper o pintor do fim da análise, da travessia da fantasia?

            Precursoras do hiper-realismo norte-americano, suas telas são muito conhecidas e alguma delas tornaram-se verdadeiros ícones da arte norte-americana, como Nighthawks (Gaviões noturnos), de 1942 e Early sunday morning (Domingo de manhã cedo) de 1930. Hopper pinta o mundo humano com uma acentuada frieza e seus personagens parecem estar absortos por uma espécie de falta de sentido.

 

Em suas telas, não se vê vestígio de amor ou sexo. Entre os diferentes personagens há apenas convívio, e todos parecem estar diante de um supremo impacto. Além disso, cada um deles parece estar profundamente só, mesmo quando partilham alguma atividade. Em sua obra sobre o pintor, Maria Costantino afirma que “as figuras solitárias que habitam as pinturas de Hopper parecem estar perdidas em pensamento”.[16] Não há troca de olhares entre eles, nem de sorrisos. Mas não há igualmente sinal de tristeza ou de dor, eles não estão desesperados, mas possuídos por uma certa solenidade que contrasta com a cena cotidiana: eles parecem viver um momento de epifania, de revelação. E esta revelação parece ser a mesma com a qual o sujeito se depara na travessia da fantasia: não há relação sexual. Seus personagens não se comunicam; cada um está só diante do outro e nada parecem esperar uns dos outros. O que é bastante notável é uma certa insistência de Hopper de representar esses personagens numa situação tal que há um limiar que separa nitidamente o mundo simbólico e o mais-além do simbólico – o real.

 

Examinemos algumas de suas pinturas. Na tela intitulada Sunday (Domingo), de 1926, um homem está sentado à beira da calçada, com os braços cruzados, o olhar absorto, como numa cidade abandonada. Em Summer interior (Interior no verão), de 1909, uma mulher seminua está sentada aos pés da cama, com o corpo abandonado, a cabeça voltada para o chão, como se nada mais restasse. Lá fora parece brilhar o sol.

 

O tema das figuras diante de janelas é onipresente em sua pintura, janelas que Lacan usou como metáfora para situar a fantasia como uma “janela para o real”. Room in Brooklyn (Quarto no Brooklyn), de 1932, apresenta uma mulher sentada de costas para o espectador e diante de uma janela que descortina os telhados nova-iorquinos. Este quadro é construído em torno de um vaso de flores que domina nosso olhar. O olhar da mulher está dirigido para o exterior da casa enquanto que o nosso é capturado por este vaso que é, aliás, um poderoso símbolo da fantasia: se o vaso é a construção do vazio, como o formula Lacan no seminário sobre A ética da psicanálise, as flores presentificam a estrutura da fantasia: preencher o vazio com um objeto erótico.

 

  A oposição entre casa e mundo é uma constante das telas de Hopper, cujos personagens freqüentemente se situam à beira de suas casas. Em Summertime (Verão), de 1943, uma mulher está de pé no primeiro degrau que separa a entrada de sua casa da rua, como se ela estivesse entre o familiar e o estranho, a realidade e o real; entre seu mundo particular, pleno de sentido, e o não-senso do i-mundo. A mesma tensão entre o dentro e o fora de casa se repete numa tela de 1949, High noon (Sol a pino), na qual uma mulher, vestida apenas com um robe, está à porta da casa situada no meio de um campo vazio.

 

Várias telas, como Cape Cod evening (Anoitecer em Cape Cod), de 1939; South Carolina morning (Manhã em South Carolina), de 1955; Sunlight on Brownstones (Luz do sol nos Brownstones), de 1956; People in the sun (Pessoas ao sol), de 1960; Second story sunlight (Segundo andar à luz do sol), de 1960 tematizam figuras humanas à beira das casas e diante de um mundo desértico, um mundo sempre ensolarado e vazio, um mundo do qual a casa é uma evidente proteção e ao qual só se chega protegido pela moldura simbólica da fantasia. Surgindo como limite para os personagens, os limites da casa parecem representar os próprios limites do corpo, sobretudo quando se sabe, com Freud, o poder quase universal que a casa tem de representar o corpo humano. Em muitas telas a casa parece significar uma proteção que defende o sujeito do mundo que o cerca.

Mais-além da casa, mais-além do corpo, isto é, mais-além do sexual, surge o não sexual, o real, o não-senso radical: lugar de das Ding, a Coisa que não tem palavra nem imagem para designá-la. Estas telas parecem sugerir: mais-além do sexual, o real; ou, mais-além da realidade colocada pela fantasia – realidade constituída por uma trama simbólico-imaginária – o real.

Em diversas obras, vê-se o puro contraste entre uma natureza selvagem, fechada em si mesma, insondável, absolutamente real, e o mundo humano, como em Seven a.m. (Sete da manhã), de 1948, tela que apresenta a vitrine de uma lojinha, com um relógio, garrafas de bebida, desenhos, cercada por uma floresta densa e escura. E em August in the city (Agosto na cidade), de 1945, observa-se o mesmo contraste violento entre a casa com seu mundo simbólico constituído pelos objetos e o exterior, no qual só se vê somente uma floresta escura e uma rua vazia. O mundo simbólico está cheio de objetos, é vivo, é rico. O mundo externo é o da natureza em seu estado bruto, do homem ali não há qualquer traço. Encontramos outros exemplos de telas que apresentam a mesma dicotomia, como Hotel by a railroad (Hotel perto da ferrovia), de 1952, Office in a small city (Escritório numa pequena cidade), de 1953 e City sunlight (Luz do sol na cidade), de 1954.

 

Três telas nos parecem concentrar com mais eloqüência a força dessa temática: Cape Cod morning (Manhã em Cape Cod), de 1950, Morning sun (Sol da manhã), de 1952 e A woman in the sun (Mulher ao sol), de 1961. Nas três, vê-se uma mulher olhando pela janela: a primeira está debruçada diante da janela que dá para a floresta; a segunda está sentada na cama, vestida; a outra está nua, de pé. Seus olhares são vazados, parecem não ter nenhum contacto com a realidade e estarem absorvidos pelo real do mundo externo. O que captura seus olhares de forma tão pregnante senão a morte figurada por esse mundo bruto?

 

Hopper nos permite retomar nossa tese de que a obra de arte é uma construção imaginária que, de dentro do mundo simbólico, indica o real fundante da estrutura psíquica. Assim como já pude mostrar anteriormente na obra de Da Vinci a onipresença desse dedo que aponta para fora da própria tela, como sendo o indicador do real,[17] em Hopper o real é indicado pelo olhar que, de dentro do mundo simbólico, se dirige para esta região que permanece fora do campo do visível, inacessível à visão do espectador.

 

Alain Didier-Weill nos fez observar que esses personagens estão como que congelados nesse encontro com o real e lhes falta um segundo tempo no qual eles poderiam se voltar ainda para o mundo simbólico, mas atravessados por esse real situado mais-além da fantasia. Ali, eles poderiam retomar a via do desejo sem restringi-lo ao suporte da fantasia. Esses personagens, aos quais falta alegria, leveza (essa posição na qual o real mortífero exerce uma atração absoluta sobre o olhar é a posição do sujeito melancólico), observou igualmente Jean Charmoille, parecem ter chegado ao limite entre o simbólico e o real, mas eles sofrem de uma injunção superegóica que lhes enuncia: “Vocês chegaram até aqui! Então, aqui permanecerão!” Como se uma verdadeira punição vinda do supereu arcaico lhes fizesse pagar caro por esta audácia de transpor os limites da janela constituída pela realidade fantasística e se situar em face do real, desvelando o logro da estrutura que nos constitui.

 

 

 


[1] Psiquiatra e psicanalista, diretor do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro Escola de Psicanálise, Professor adjunto do Instituto de Psicologia da UERJ, membro correspondente do Mouvement du Coût Freudien (Paris) e da Association Insistance (Paris/Bruxelles).

 

[2] Na primeira conferência introdutória sobre psicanálise, Freud chama atenção para o fato de que o termo devaneio (em inglês, day-dream, em alemão, tag traum) sugere um parentesco entre a fantasia e o sonho, já que inclui o sonho em seu próprio nome, embora não apresente as duas características que definem todo e qualquer sonho: ocorrer durante o sono e ser constituído predominantemente de imagens.

 

[3] JORGE, M.A.C., “Les quatre dimensions du réveil: rêve, fantasme, délire, illusion”, in DIDIER-WEILL, Alain (org.), Freud et Vienne, Paris, Érès, 2004.

[4] LACAN, J., Televisão, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1993, p.55.

 

[5] LACAN, J., “Apresentação das Memórias de um doente dos nervos”, in Outros escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003, p.221.

 

[6] LACAN, J., “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, in Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998, p.589.

 

[7] Daí o valor atribuído por Lacan à homofonia, na língua francesa, entre nom, nome, e non, não.

 

[8] LACAN, J., “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, in Outros escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003.

 

[9] JORGE, M.A.C., “Freud: da sedução à fantasia”, in Sexo e discurso em Freud e Lacan, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988.

 

[10] FREUD, S., Abrégé de psychanalyse, Paris, PUIF, 1985, p.71.

 

[11] Foi Denise Maurano quem nos chamou a atenção para esse ponto bastante importante da reviravolta introduzida por Lacan com as fórmulas quânticas da sexuação apresentadas no seminário Mais, ainda.

 

[12] DUCHAMP, Marcel, “O ato criador”, in BATTCOCK, Gregory, A nova arte, São Paulo, Perspectiva, 2002, p.73.

 

[13] DUCHAMP, Marcel, Ingénieur du temps perdu – entretiens avec Pierre Cabanne, Paris, Belfond, 1977, p.122.

 

[14] DUCHAMP, Marcel, op.cit., p.132.

 

[15] DUCHAMP, Marcel, op.cit., p.126.

 

[16] COSTANTINO, Maria, Edward Hopper, New York, Barnes and Noble, 1995, p.11.

[17] JORGE, M.A.C., Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan – vol.1: as bases conceituais, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000, p.157.