Autora: Tereza Mendonça Estarque, Psicanalista, Doutora em Ciências Sociais PUCSP, Fundadora e Presidente do Instituto de Estudos da Complexidade.
Homo Creator : um invejoso de Deus?
Aproveito este nosso encontro para colocar em discussão algumas indagações que vêm me ocupando. Na trajetória desta apresentação, farei inicialmente uma breve conceituação da inveja, diferenciando-a de outros dois pecados capitais: o orgulho e a cobiça. Em seguida tentarei chegar à um ponto que me interessa, que é a pulsão do conhecimento, relacionada desde o mito bíblico da criação, com o pecado de Adão, entendido como pecado de não submissão à autoridade de Deus, por orgulho. Gostaria de poder pensar com vocês, por que as atividades do homo creator [1] vêm sendo identificadas, no imaginário social, como um pecado de orgulho, inveja e cobiça em relacão aos bens divinos.
Falo inicialmente de orgulho, porque este é considerado a fonte geral de todos os pecados e dele derivam todos os outros. Por isto, às vezes fica difícil a gente saber se é exatamente de inveja ou de orgulho que se trata, às vezes fica meio confuso, porque um deriva do outro.Assim, no verbete sobre o orgulho, do Dictionaire Théologique Catholique, o orgulho é o primeiro pecado do anjo e também, o pecado do 1º homem, pecado de não submissão à autoridade de Deus. No verbete sobre a inveja, é pela inveja do demônio que o pecado entrou no mundo.Ou seja, a inveja aparece ligada à idéia de rivalidade.
Para tentar aclarar esta confusão, tomei em meu auxílio uma conceituação de São Tomás de Aquino, que fala da inveja como uma tristeza, como um sentimento de infelicidade diante da felicidade alheia, ou da felicidade diante da infelicidade alheia.
O invejoso não necessariamente quer o que o outro tem, não necessariamente quer destruir o outro, embora possa fazê-lo através de intrigas, maledicências ou mesmo concretamente, como foi o caso de Caim e Abel.O que o invejoso realmente quer é que o outro não tenha. A inveja requer comparação entre o Eu e o Outro e implica o desejo de suprimir as diferenças. É uma maneira de nivelar por baixo: se eu não posso ter, não suporto conviver com alguém que tenha. A cobiça, ao contrário, nivela por cima: se o outro tem, eu também quero ter. A cobiça tem uma potência, é produtiva, comporta um desejo e pode até mesmo comportar uma dose de saúde, se o preço da conquista não implicar o apagamento de princípios éticos fundamentais.
Por isto eu gosto muito desta aproximação entre inveja e tristeza, feita por S. Tomás de Aquino, porque penso que a inveja seja da órdem da impotência. A inveja lança no marasmo e se houver produção, será sempre da órdem de um ataque ao outro, pois trata-se de regozijar-se com a infelicidade do outro.
Kant tem uma frase que é terrível, porque é incrivelmente verdadeira e corajosa. Ele diz assim:Há algo, na infelicidade de nossos melhores amigos, que não nos desagrada completamente.Kant é muito feliz nesta formulação, pois não se trata de uma felicidade ruidosa, mas de um prazerzinho silencioso que pode irromper à consciência para ser imediatamente afastado e repudiado, porque é um sentimento vergonhoso, ambivalente, produtor de culpa e muito doloroso para o ser humano.
Quando pensamos em Kant, esbarramos inevitavelmente na questão dos universais, pois existe sempre uma discussão neste sentido, se a inveja seria um sentimento universal ou seja, um sentimento próprio da Natureza Humana.Não pretendo discutir isto aqui, pois nos levaria longe demais, mas se pensarmos na inveja como uma forma de rivalidade, observamos que estes sentimentos estão na base de quase todos os mitos constitutivos da grande maioria das culturas.
Estas construções culturais estão condicionadas, quase sempre, pelo modelo mítico fechado, descrito por Albin Lesky. Este modelo obedece a uma sequência de fatos que se repete segundo uma órdem pré-fixada e inalterável, funcionando como alicerce da moralidade. Esta sequência de fatos compreende: um ato de transgressão ou ultrapassamento de um limite estabelecido, interpretado como pecado de orgulho, inveja ou cobiça, seguido de castigo, sentimento de culpa e desejo de reparação.
Neste caso, o amor, amor ao próximo, é visto como uma aquisição da cultura.Podemos dizer que, para a psicanálise, o amor é algo que advém e se superpõe à um mal radical inicial. De forma parecida, Morin, em seu evangelho da perdição, insiste em falar de uma ética da solidariedade entre irmãos que se unem, não por um desejo espontâneo de serem salvos, mas porque já estão perdidos. Maria Ritha Kehl, por sua vez, reuniu textos que indagam sobre a existência ou não de uma Função Fraterna .Por outro lado, no livro de Maturana e Varela, A árvore do conhecimento, sustenta-se a existência de uma pulsão solidária primária, de caráter instintivo e, portanto, biológico.
A psicanálise de Freud serviu-se do mito de Édipo Rei, onde estão presentes a inveja, a rivalidade e o parricídio, para pensar o sujeito neurótico da civilização. Deve-se considerar que, tanto a rivalidade quanto o parricídio, foram atos inconscientes no caso da tragédia de Édipo enquanto que o pecado, se eu estiver equivocada peço a ajuda dos teólogos aqui presentes, ele é sempre consciente, seja um ato, um desejo, um pensamento ou sentimento, só há pecado em presença de consciência.
Junito Brandão nos sinaliza que jamais um poeta trágico pôs em cena um parricídio consciente. É um pouco forte demais, por isto, aparece sempre como fruto de um erro. Assim temos Édipo e Laio, Perseu e Acrísio, Teseu e Egeu, Telégono e Ulisses, Pélops e Enômao. Mas há uma coisa que eu gostaria de chamar a atencão, por se tratar de um fato fundamental: mesmo que a falta seja inconsciente, fruto de um erro, e não deliberada, isto não impede o castigo, que é inflingido não somente ao sujeito infrator, mas a maldição se transmite de geracão para geração até a extinção do último membro da linhagem.
Deleuze subverte o modelo edípico freudiano, ao dizer que a rivalidade começa com o pai e não com a criança. Para ele,Édipo é antes uma paranóia do pai do que um desejo neurótico do filho. Se o filho passa a ter este desejo, é por um rebatimento do social sobre a criança.
Os mitos gregos estão repletos de filicidas e, na maioria das vezes em que o filho mata o pai, é para se defender de um ataque deste.Nesta perspectiva, cabe perguntar, porque um pai limitaria o apetite intelectual de um filho?
Para ilustrar esta discussão, separei alguns trechos bíblicos do mito da criação. É Deus quem fala: Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás. Este conhecimento é um privilégio que Deus se reserva e que o homem usurpará pelo pecado.Na argumentação da serpente, figura representativa da tentação, ela diz: Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como Deuses, versados no bem e no mal.. No momento da expulsão do paraíso, após a desobediência do homem, Deus pondera: Se o homem já é como um de nós, versado no bem e no mal, que agora ele não estenda a mão e colha também da árvore da vida e coma e viva para sempre.
Bem, esta é uma questão extremamente atual, pois o homem, através do trabalho científico, não poupa esforços em pesquisas sobre a longevidade. Estes trabalhos mobilizam elevados investimentos financeiros que sustentam importantes investigações de ponta, sobre o envelhecimento celular. Fala-se em expectativas de vida superiores a quinhentos anos. Mais do que isto, não se trata apenas de prolongar a vida, mas de prolongar a juventude, prevenir o envelhecimento que passa a ser visto como doença. É claro que isto se parece mais com ficção e mitologia do que com realidade, mas o fato é que estes domínios estão praticamente emparelhados atualmente. O homem de ciência trabalha pela longevidade e pelo prolongamento da juventude, o homem mitológico sempre pagou pelo roubo da ambrosia.
Devemos observar que a idéia de rivalidade, de roubo e ultrapassamento de um território supostamente proibido está presente, tanto no mito quanto em nosso imaginário social, como nos informam as manchetes exibidas na mídia: homens brincando de Deus, ou ainda, Deuses de jaleco branco, homens invadindo o território dos Deuses.
Ora, na tradição bíblica, os primeiros patriarcas viviam mais de 900 anos e no período entre Noé e Abraão, de 200 a 600 anos; já os patriarcas hebreus, de 100 a 200 anos. Na verdade, a dimunuição do tempo de vida dos homens já é consequência da degradação do homem pelo progresso do mal.Diante deste estado de coisas, Deus resolve fixar o limite de idade do homem em 120 anos, determinando: Meu espírito não se responsabilizará indefinidamente pelo homem, pois ele é carne. Não viverá mais do que 120 anos.
Chegamos então ao momento de nos perguntarmos: Quando o homo crator busca a longevidade e o prolongamento da juventude, está se opondo a Deus, cometendo pecado de orgulho e inveja, ou trabalhando a favor de si mesmo? Está afirmando sua potência ou lutando contra a potência de Deus? Dito de outra forma, a pulsão ou apetite do conhecimento científico podem ser equiparados ao pecado do anjo e àquele de Adão? Ou isto seria um vício de nosso pensamento ocidental, do qual poderíamos tentar nos desvencilhar?
Será que não seria possível tentar sair deste eterno registro de comparação com o Outro e da rivalidade com o Outro? Romper com o modelo mítico fechado e sua sequência aprisionante de transgressões seguidas de castigo, culpa e reparação? Onde situar nos dias de hoje, a necessidade do sacrifício e do herói? Aliás, no mundo da pesquisa científica, por uma contingência da complexidade crescente do conhecimento e da velocidade exigida à estes empreendimentos, o herói, o inventor solitário, perseverante e abnegado, dá lugar às equipes e aos trabalhos coletivos.No lugar do herói, surge o laço social.
Se tomarmos como ponto de partida outros mitos, ou ainda alguns estudos etológicos sobre culturas fundadas na cooperacão e na solidariedade, não poderíamos tentar sair deste registro de pensamento?
Este imaginário social que identifica as ações do homo creator como um pecado contra Deus, comporta, de forma subjacente, as idéias de sacralidade da vida e da natureza e é extremamente relevante, pois norteia as legislações que regulam a ética na pesquisa científica, motivo pelo qual deveriam estar um pouco mais livres deste conteúdos mitológicos e mais abertas às questões ligadas à uma Ética da Responsabilidade, para mencionar Hans Jonas.
Tanto a engenharia genética quanto a psicanálise, estão diretamente ligadas à questão da filiação e da transmissão. A psicanálise trabalha com a possibilidade de diferenciação. Lembremos que a inveja opera com a comparacão e com o desejo de anulação das diferenças. A expectativa do trabalho analítico é que o sujeito possa deixar de repetir, não só em sua própria vida, mas também no sentido transgeracional, no sentido de interromper a transmissão da maldição na linhagem.
Da mesma forma, com a engenharia genética, há um grande esforço no sentido de interromper a transmissão de doenças, pela via de uma diferenciação na estrutura dos genes responsáveis pela transmissão destes males.
Uma Ética da Criação passa por um desejo de diferenciação, o que por vezes, como vocês sabem, é bem difícil, pois requer uma disjunção. Para construir o novo, é preciso dissolver o que está estabelecido como senso comum, sem que se tenha, necessariamente e prontamente, um outro consenso para substituir o antigo. Então fica difícil sustentar este momento de suspensão e de transição entre uma realidade conhecida e uma outra, ainda estranha e obscura. A tendência é, obviamente, agarrar-se ao conhecido e recusar o novo, identificando-o com o mal.
Nesta perspectiva, pensar o homo creator como um invejoso de Deus, como um imitador sem criatividade, seria enxergá-lo com nosso olhar enviesado e concebê-lo com um pensamento viciado, condicionado pelo modelo mítico fechado.
É interessante observarmos o que se passa em torno do mito de Prometeu, bastante utilizado para ilustrar algumas questões contemporâneas em bioética e tecnociência.Vocês conhecem muito bem o conteúdo desta trilogia. Prometeu, aquele que roubou o fogo de Deus para ofertá-lo ao homem, acaba acorrentado à um monte, tendo seu fígado comido por abutres, condenado por sua ousadia e desobediência à este sofrimento eterno e sempre renovado.
Ocorre que o mito não termina exatamente assim, ao contrário, na última parte desta trilogia, Prometeu se reconcilia com os deuses e passa a morar no Olimpo.Fica então esta questão instigante: por que este tipo de formacão cultural na qual estamos imersos, fez desaparecer a terceira parte da trilogia, omitindo assim um outro desfecho, não fatalista, mas um final conciliado do herói com os deuses?
Da mesma forma, penso que se pudermos nos colocar em outro registro, que não aquele da inveja e da competicão desmedida, podemos nos dar o direito de supor um destino não tão catastrofista para a cultura tecnocientífica, onde a idéia de uma vingança da natureza ou dos deuses possa ser substituída por uma consciência de nossa responsabilidade em relação à herança e à transmissão. Por exemplo, se sabemos que a destruição irrefreada da natureza deixará uma herança maldita para nossos filhos e, se temos plena consciência disto, então temos que saber que estes atos conscientes são pecados, pecados da cobiça, pecados do capital, que devem ser punidos pela lei do homem, no sentido de proteger a transmissão da maldição para as gerações futuras.
Mas não precisamos reduzir a pulsão ou o apetite do conhecimento à um pecado de inveja e cobiça, que deve ser severamente reprimido para evitar que sejamos punidos, como acreditam alguns segmentos e posições teóricas em bioética. Sabemos ainda, por nossa experiência em psicanálise, da insistência do desejo e de suas requintadas habilidades para escapar e se expressar, apesar dos esforços renovados do recalcamento.
Talvez por isto, as legislacões atuais sobre ética em pesquisa estejam adotando proibições temporárias, que deverão ser revistas após alguns anos. Se por um lado as leis morais, como o mandamento não matarás, eram definitivas e para sempre, os princípios éticos em ciência estão sujeitos à revisões periódicas. Por exemplo, o não clonarás foi referendado por um período de 5 anos, após o qual a lei deverá ser novamente examinada.
Para concluir, diria que não precisamos reduzir o homo creator à um invejoso de Deus, assim como não precisamos conceber um Deus paranóico que não queira conceder ao filho, o acesso ao conhecimento, desde que este seja feito, repito, dentro dos princípios de uma Ética da Responsabilidade. Talvez possamos subverter a interpretação recorrente que pesa sobre este ato de criação, visto sempre como transgressão. Talvez possamos inventar um final diferenciado para esta história, um final que liberte o homo creator da maldicão do Destino e da rivalidade com os Deuses e o faça artífice de uma outra cultura, orientada para o devir e para a solidariedade entre os pares.
Obrigada.
Tereza Mendonça, Psicanalista, Doutora em Ciências Sociais pela PUCSP, Coordenadora do Núcleo para o Pensamento Complexo R. J.
[1] o conceito de homo creator foi formulado em minha tese de doutoramento na PUCSP e é ancorado na idéia de o homo sapiens demens de Edgard Morin, ganhando, em minha formulação, a especificidade conceitual de sua habilidade atual para reprogramar a vida através da engenharia genética.