Autora: Tereza Mendonça Estarque
EDITH STEIN e MADRE TERESA DE CALCUTÁ: PROFETAS DO AMOR
Amor e morte são casados
E moram no abismo trevoso
Seus filhos,
O que se chama Felícitas
Tem o apelido de Fel
(Adélia Prado/ a seduzida)[1]
O amor proporcionou-me a plena combustão para o meu trabalho, curou-me quando estava doente, salvou-me quando estava perdido. »
(Edgard Morin, In « Meus demônios »)
Na tradição bíblica, profetas são aqueles que falam em nome de Deus. São mensageiros e intérpretes da palavra divina, chamados e escolhidos por Deus de forma inelutável, nada podendo contra esta determinação.
As duas personalidades propostas para esta mesa são figuras exemplares, pois o que verdadeiramente caracteriza o profeta não é apenas o fato de que ele seja um mensageiro da palavra de Deus, restringindo-se sua ação ao domínio do verbal, mas que a própria vida do profeta é revelação da natureza do amor divino no mundo dos homens.
Cada uma destas grandes mulheres encontrou seu meio singular de vida para professar o amor: Edith Stein em sua filiação à Santa Teresa de Ávila e S. João da Cruz, escolheu o silêncio do amor no caminho da meditação e Madre Teresa de Calcutá, à exemplo de Santa Teresa de Lisieux, torna-se uma operária do amor no serviço dos pobres.
Existem diversas formas de execício do amor. Edgar Morin faz uma diferença entre palavras sobre o amor e palavras do amor, sendo uma o inverso da outra. As palavras sobre o amor constituem um discurso frio, técnico, objetivo, que, em si mesmo, degrada e dissolve seu objeto.[2] As palavras do amor frequentam o discurso poético entendido aqui não como poesia estrito senso, mas como discurso impregnado de paixão, um discurso amoroso e caloroso.
Há ainda os silêncios do amor, que estão presentes na prática contemplativa e também no silêncio dos amantes. Lacan vai falar do gozo místico, como um gozo impossível de descrever em palavras, porque estando para além do falicismo, escapa à inscrição no simbólico. Para a psicanálise Lacaniana, é o falicismo que vai permitir o acesso à linguagem.
Morin se pergunta se o amor é pré-verbal ou se ele procede à palavra, e seu pensamento dialógico leva-o a concluir pela simultânea precedência e procedência do amor à palavra. O amor enraíza-se em nossa corporeidade e, neste sentido, pode-se dizer que o amor precede a palavra. Mas o amor encontra-se, ao mesmo tempo, enraizado em nosso ser mental, em nosso mito, que, evidentemente, pressupõe a linguagem e, nesse sentido, pode-se dizer que o amor decorre da linguagem. [3]
Morin nos diz ainda, que o amor é o ápice da união entre loucura e sabedoria Justamente por isto, é um sentimento extremamente corruptível. Em nome do amor comentem-se muitas atrocidades, pois que ele se degrada frequentemente de amor próprio, fundado no narcisismo necessário à constituição de uma boa auto estima, para amor impróprio, enamoramento excessivo de si mesmo que vai configurar a soberba e o egoísmo.
O amor é um sentimento poderosíssimo, para o bem e para o mal. A vida dos santos e de muitas pessoas comuns, nos ensinam sobre as diversas formas de execício do amor, que requerem movimentos permanentes de luta entre vida e morte. Santa Teresa de Lisieux[4] sabia muito bem disto em sua devoção: Senhor Deus dos exércitos, que dissestes no vosso evangelho: “ Não vim trazer a paz, mas a espada”, armai-me para a luta. Outra não é minha espada senão o amor. Ao mesmo tempo, inaugura uma nova via espiritual, a pequena via o caminho da infância espiritual que tem por base a confiança absoluta em Deus. O êxtase é fruto direto desta entrega arrebatadora. Santa Teresa confia-se inteiramente à ternura materna de Deus “com a ternura da mãe que acaricia seu filhinho, assim vos consolarei ( IS. 66,12-13)” Entre a luta e a ternura, o que me interessa enfatizar são os diferentes matizes do amor.
Freud entendia o amor como força de coesão, pulsão de vida, fundamental para a constituição do indivíduo e dos grupamentos humanos, mas também sabia de seu poder mortífero, pois ao unir tende também a anular as diferenças e produzir uma massa amorfa e intolerante à alteridade. Seria necessário portanto a ação de uma outra força, a pulsão de morte, força disruptiva que agindo sempre amalgamada à pulsão de vida, vai permitir o arejamento e o movimento necessário às múltiplas possibilidades de organização da vida.
Como indica Daniel Bougnoux[5], o amor transborda e faz cola entre os indivíduos. Relembrando Saint-Exupéry, ele diz que amar é olhar juntos na mesma direção, mas para chamar nossa atenção em relação aos riscos deste olhar unidirecional, reenvia-nos à uma foto do povo alemão unificado pelo nazismo, com as mãos e os olhares estendidos na mesma direção. Este é um triste exemplo de vitória da loucura sobre a sabedoria no exercício do amor e, por isto mesmo, é preciso cuidado com as variâncias, desvios e degradações do amor.
Trabalharei aqui com a hipótese da existência de uma relação entre alguns diferentes estados amorosos: o êxtase místico, o êxtase hipnótico e a transferência amorosa na clínica psicanalítica.
Freud declara em 1907, que o tratamento psicanalítico é um tratamento pelo amor. Isto dito assim, desvinculado de toda uma compreensão da teoria do amor em sua obra, é uma afirmação surpreendente. A psicanálise cura pelo amor, amor de transferência, que ele dirá mais tarde ser um amor como qualquer outro. O que difere, digamos, é o manejo deste amor pelo analista, que não deverá corresponder concretamente a ele mas, ao contrário, tomá-lo como repetição que permitirá, através dos manejos possíveis, promover diferenciações nas formas de amar aprendidas ou desaprendidas nas relações primordiais do paciente com seus primeiros objetos amorosos.
A experiência analítica revela a intensa complexidade dos afetos colocados em cena ao longo de todo o processo. Se o analista não deve corresponder aos sentimentos de seu cliente, também não pode mostrar-se indiferente a seu sofrimento. Sabemos dos males trazidos à prática psicanalítica pelos engodos da neutralidade.É preciso empatizar, exercer a dureza e a compaixão, esquivar-se do envolvimento afetivo obnubilante, preservar sua possibilidade de ação e reflexão, numa clínica sempre efetivada sob o amor de transferência. Não é tarefa fácil, mas para isto, é longo o processo de treinamento do candidato a analista. Mas nem mesmo isto é garantia de realização de uma análise. O que pode torná-la possível é, primeiramente, que aconteça um bom encontro e que neste encontro possa o analista exercer sua função a partir de uma ética que o norteie na direção da cura.
Os bons encontros são aqueles que têm para nós o estatuto de um acontecimento, no sentido de ruptura com o vivido até então. Podemos dizer que o ato analítico é aquele que muda a orientação do real para um sujeito. Teresa Benedita da Cruz[6] e Madre Teresa de Calcutá, profetas do amor, em seus caminhos singulares, tiveram diferentes encontros com duas grandes figuras da mística católica que foram, como vimos, Santa Teresa D ‘Ávila para Edith Stein e Santa Teresa de Lisieux, para Madre Teresa de Calcutá.
Os grandes místicos sinalizam-nos também o mistério que enreda amor, sofrimento e cura. S. Paulo da Cruz (1694-1775), inspirado por Tauler que viveu quatrocentos anos antes dele dizia: Creia-me, nunca conheci uma alma que se dedicasse à perfeição e oração e tivesse boa saúde.[7] Pode-se adoecer por excesso ou por falta de amor e cada um destes percalços condiciona diferentes modalidades de pathos. Sabemos, a partir de diferentes escolas de pensamento, que o crescimento espiritual (psíquico ou humano se preferirmos), faz pesadas exigências à constituição psicofísica da criatura humana.[8] Esta constatação não implica que o adoecimento seja uma meta ou mesmo uma necessidade, ao contrário, deve ser visto como contingência a ser minimizada. Stinissen observa que Antes de julgar coisa normal que se fique doente durante a caminhada, procura-se prevenir tais incidentes, não negligenciando o corpo nem a psique. Assim, a hatha-yoga pretende fortalecer o corpo, para que resista às pressões do crescimento espiritual.[9]
É preciso ousar pensar a saúde de forma mais humilde. Ousadia para romper com as formulações culturais e científicas confortavelmente estabelecidas que ainda insistem em separar os males do corpo e da alma ou a associar a santidade da alma à doença do corpo como preço a pagar. Humildade para perceber o quanto deste campo ainda resta como enigma e para compreendermos a necessidade de nos abrirmos às diferentes culturas e produções de conhecimento.
Lacan era apaixonado por Santa Teresa D‘Ávila e por S.João da Cruz. Dedica-lhes algumas páginas de seu seminário Encore… , identificando o gozo místico ao gozo feminino, acessível somente – ele dirá – às mulheres, aos místicos e aos artistas, sempre pela via do masoquismo primário. No caso dos homens, esse acesso fica restrito a alguns artistas e/ou místicos. S. João da Cruz é uma figura exemplar, ao mesmo tempo artista e místico.
Ao falar de masoquismo primário, é preciso ter o cuidado de esclarecer que esta terminologia, talvez não a melhor, refere-se não à uma categoria nosológica característica de uma leitura patologizante, mas a um estado constitutivo da personalidade humana, associado à uma passividade ativa que vai caracterizar o feminino para a psicanálise e os estados contemplativos no caminho da meditação.
Cura é outra palavra desconcertante, quanto mais se a vincularmos à idéia de amor. Cura pelo amor. Esta é a escandalosa proposta de Freud, no interior de um cenário cientificista que tinha por princípio a necessidade de afastarmos os afetos para conferir maior objetividade às atividades experimentais. Freud não podia dispensar, é claro, este reconhecimento da comunidade científica e pode-se imaginar seus esforços no sentido de conciliar as necessidades deste novo método de tratamento às exigências epistêmicas de sua época.
Freud foi assim, sem dúvida, um profeta do novo paradigma, um anunciador da boa nova da complexidade. Cura pelo amor, parece ser uma proposta religiosa demais, misteriosa demais, mas isto não produz demasiado estranhamento no interior deste paradigma complexo que propõe sua religião, no sentido mesmo de uma re-ligação dos saberes.
Ainda que o espírito científico nos force a tomar os mistérios como enigmas, ainda que o espírito religioso conceda que alguns mistérios possam transformar-se em enigmas e que, como tal, possam ser um dia decifrados pela ciência, é fundamental, à luz de um conhecimento produzido pelo que vem se denominando terceira cultura, conservarmos a possibilidade de nos surpreendermos, de perdermos o chão e o caminho para reencontrarmos uma direção, mesmo que seja completamente outra, mesmo que tenhamos que reconhecer que estávamos seguindo as pistas erradas. Isto não deveria importar tanto quanto habitualmente importa, mas sim que os anseios de verdade não fossem sufocados pelo narcisismo do conhecimento estabelecido, que nos faz reduzir a multiplicidade inscrita no real, ao empobrecimento decorrente do pensamento único.
Neste ponto retornamos a Daniel Bougnoux, organizador do colóquio de Cerisy e à imagem unificada do povo alemão, utilizada como capa do livro de mesmo nome, na edição francesa.
Este colóquio, realizado em 1989, reuniu profissionais de diferentes áreas do conhecimento em torno da questão da hipnose, encontro transdisciplinar por excelência, visto que a complexidade do objeto não comportaria outra abordagem possível. Bougnoux lutou contra o que considera ser uma alergia da comunidade picanalítica aos problemas debatidos no colóquio, que permaneciam e permanecem, ainda hoje, sendo tratados como tabu. Uma das resistências a este tema, reside na necessidade de salvaguardar o estatuto científico da psicanálise.
Chertok, um dos participantes do colóquio afirma que o transe hipnótico e a transferência têm uma natureza comum. Junta-se à Isabelle Stengers para afirmar que a relação hipnótica está presente em toda psicoterapia[10] e que a aceitação deste fato poderia trazer avanços sobre a questão da cura, ainda que para isto tivéssemos que ampliar nossas concepções sobre racionalidade, postulando a necessidade de que as pesquisas assumam definitivamente seu caráter transdisciplinar.[11]
O transe hipnótico guarda estreita relação com o amor. Pressupõe uma capacidade ou um desejo de abandonar-se sem reservas e confiantemente ao Outro. Pressupõe, para John Bowlby, psicanalista e etólogo, o conceito de attachement, ( apego) que designa condutas comuns em bebês humanos ou animais, buscando satisfazer, junto à mãe, sua necessidade de proteção.[12] Esta necessidade, tão importante quanto a alimentação e a atividade sexual, tende a enfraquecer-se à medida em que o bebê se torne um adulto, mas é sempre passível de retornar na vigência de situações de instabilidade que possam irromper ao longo da vida.
É precisamente aquilo que fica como marca deste desamparo primordial, que vai deixar uma brecha para o estabelecimento da transferência amorosa e do transe hipnótico como possibilidade de abandono de si no Outro. Este amor pré-verbal, que caracteriza os laços fusionais da relação mãe-bebê e que será trabalhado por Winnicott e Balint, entre outros, para entender a psicose e os casos limites como resultado de falhas afetivas na primeira infância, será também um instrumento de reparação e cura, na forma de uma comunicação emocional, empática, amorosa, à exemplo do holding de Winnicott, entre o terapeuta e o paciente.
A experiência mística e religiosa trabalha a dimensão da cura como um processo sempre na dependência da fé. Todos os milagres descritos na literatura do Novo Testamento são marcados pela convicção de que a fé do suplicante é o veículo para sua cura. É a possibilidade de estabelecer este link que atrai para aquele que crê, todas as alegrias e perturbações auferidas através desta participação com o Divino. A fé se expressa num tipo de adesão que dispensa o argumento racional, situando-se além do entendimento e aquém da possibilidade de verbalização, o que nos remete ao sentido dado por Bowlby, ao conceito de attachement supra mencionado .
A consciência do profeta indica-lhe o lugar de instrumento através do qual a mensagem de Deus se fará ouvir. Esta convicção se funda numa experiência misteriosa, digamos mística, num contato imediato com Deus. [13]
Contudo, o êxtase místico não é excessivamente valorizado pelo discurso religioso, nem mesmo é colocado como um estado a ser perseguido, ao contrário, deve ser visto com reservas, pois representa um risco de queda nas armadilhas da vaidade, nos equívocos dos sentidos. Reconhece-se, contudo, que esta intervenção de Deus na alma do profeta coloca-o num estado psicológico supranormal. Negá-lo, seria rebaixar o espírito profético ao nível da inspiracão do poeta, ou das ilusões dos pseudo-inspirados. [14]
O êxtase místico e, em especial, os estigmatas, despertam e aguçam a curiosidade científica. Até que ponto estes fenômenos pertencem à esfera do enigma ou do mistério?
O foco está frequentemente colocado na diferenciação entre os verdadeiros e os falsos estigmatas. A necessidade de tal diferenciação é bastante óbvia e, se por um lado a Igreja católica já tem rigorosos mecanismos de análise e verificação dos fenômenos apresentados como sobrenaturais, há ainda os cientistas empenhados em provar a inexistência de tais fenômenos. No interesse de minha argumentação, torna-se necessário distinguir alguns níveis de problemas: 1) a simulação consciente 2) a simulação inconsciente, na qual a pessoas em estado de transe se auto infligiria os sinais e passado o transe não se lembraria de nada 3) o surgimento espontâneo comprovado das chagas durante o transe.
Ora, se os estigmatas devem-se à uma intervenção direta de Deus como exterioridade ou à ação de um poderoso desejo inconsciente de receber os sinais, não é o que me causa e instiga, até mesmo porque minha tendência seria não operar uma separação radical entre o sujeito amoroso e o objeto fortemente investido por ele. De todo modo, haverá sempre alguma participação consciente ou inconsciente, na forma de uma passividade ativa, na relação com este grande Outro arrebatador. O que me interessa neste último ponto, é chamar a atenção para os estados alterados de consciência ou estados psicológicos supranormais, para utilizar o termo mencionado acima.
O que se passa no trânsito estritamente relacional entre o psíquico, o somático e o trans-psicosomático do par envolvido na situação do transe de tal forma que as alterações de consciência encontrem um correlato no corpo, fazendo brotar, na carne, o efeito de uma órdem comandada por aquele que induz e controla o transe do outro? Eis uma pertubadora questão històricamente desacreditada e relegada pela ciência.[15]
Após o colóquio de Cerysi, foi fundado um laboratório de hipnose com a finalidade de criar um espaço de pesquisa que pudesse ancorar, empiricamente, as questões levantadas durante o colóquio. Esses experimentos demonstraram que, sob transe hipnótico, vale lembrar, sob a vivência de absoluta confiança que permite o abandono de si e a entrega irrestrita ao Outro, também foi possível abrir uma vesícula nas mãos de uma paciente, apenas apelando para o poderoso efeito da sugestão durante o transe. Poderoso instrumento de transformação esta entrega amorosa, que pode produzir a cura e o adoecimento, revelando-os no corpo, a partir destes ainda nebulosos estados alterados de consciência, fenômenos que concernem também os campos da física quântica, da biologia molecular, da neurociência e de quantos outros discursos pudermos dispor para lançar alguma luz sobre este campo complexo e enigmático que envolve os estados alterados de consciência.[16]
Apenas uma coisa parece coincidir, quando falamos dos diferentes êxtases, seja o místico, o hipnótico, ou aquele que também parece agir em doses homeopáticas na transferência analítica: uma experiência amorosa que possibilite, em maior ou menor nível, o abandono de si e uma entrega absoluta ao Outro.
O discurso místico afirma que estes fenômenos não são acessíveis ao entendimento, sendo portanto da órdem do mistério. Porém, do ponto de vista histórico, muitos fenômenos que eram considerados como mistérios, revelaram-se ser enigmas passíveis de decifração. O que deve ser evitado, é o reducionismo e a simplificação que beira, por vezes, o desrespeito. Por se tratarem de fenômenos de extrema complexidade, devem ser abordados com a dimensão que merecem. A humildade e a responsabilidade do homem de ciência precisa ser exercitada e desenvolvida. Joaquim Bouflet[17], consultor do Vaticano na Congregação das causas dos Santos, entende que o que se exige de um homem de ciência, não é que ele acredite em milagres, mas que possa se render ao fato de que, por enquanto, não se encontre explicação científica para alguns casos de estigmatas. Que o reconhecimento do sobrenatural seja pelo menos relativo e que o fenômeno possa ser situado, em outro nível de realidade, conceituação tão cara a Basarab Nicolescu, físico e pensador das ciências da complexidade.
Assim, se os conhecimentos sobre a histeria podem ter contribuído para a elucidar os casos de falsos estigmatizados, reduzir todos os casos de estigmatas à manifestações histéricas revela, no mínimo, um estreitamento de pensamento. Dominique de Courcelles, pesquisadora do CNRS, nos invoca a refletir sobre o tema, sem anacronismos ou idéias preconcebidas. O que está em causa no familiar estranhamento produzido pelos estigmatas? Na introdução da revista L’Herne de nº 75, publicação transdisciplinar exclusivamente dedicada aos estigmatas, Dominique pergunta-se por que esta questão não foi ainda suficientemente colocada e tratada pelas três religiões monoteístas?
Interroga-se ainda, sobre o que se passa neste encontro entre um corpo enigma que faz falar o Outro e um corpo que se torna ele mesmo linguagem. O corpo que sofre, o que ele coloca em jogo na confrontação do corporal e do espiritual, do humano e do divino? A mim interessa também particularmente, a relação entre amor e sofrimento, especialmente, sofrimento corporal, visto que o estigmata é percebido pelos místicos, como prova contundente do amor de Deus. Que o encontro amoroso com Deus, implique repetir e inscrever em seu próprio corpo, o martírio do Amado, não me parece ser uma necessidade, mas antes, um desejo daquele que ama. O êxtase amoroso, qualquer que seja ele, engendra simultaneamente sofrimento e gozo, mas pode também libertar para a compreensão da alteridade. Confunde-se frequentemente o amor com possessão, no duplo sentido mesmo de possuir e de ser possuído. A autenticidade do amor implica a possibilidade de abertura para o Outro, deixar-se contaminar pela verdade do outro (…) encontrar sua verdade através da alteridade.[18]
Morin nos diz que é preciso assumir o amor. Se o amor é também, primitivamente, necessidade de calor e aconchego frente ao desamparo de um mundo frio que se abre para o recém nascido mamífero, se além disto, a necessidade reprodutiva constitui ainda um outro fundamento biológico que nos impele à aproximação, o que se passa no processo civilizatório, para que haja hoje uma necessidade de sermos conclamados a assumir o amor?
Edith Stein, judia convertida ao catolicismo, nascida em 1881 e morta em 1942 em Auschwitz, pela intolerância nazista, filósofa renomada identificada à fenomenologia de Hussel, enfrentou todos os desafios e preconceitos que concerniam o lugar da mulher no mundo e, em seguida, ao fato de ser uma judia alemã, na vigência do nazismo. Mulher inquieta e de personalidade forte, buscou intensamente a verdade que se fez revelar para ela através do diário de Santa Tereza de Ávila. Sustentou às últimas consequências, a fidelidade à sua fé católica e ao amor por sua judeidade, arcando com as dificuldades impostas por seus anseios de extensão e transbordamento de seu pertencimento. Mulher, intelectual, judia alemã e católica, Teresa Benedita da Cruz, quer exceder os campos delimitados para sua ação.
Madre Teresa de Calcutá, esta albanesa nascida em 1910, decidiu-se cedo, ainda na adolescência, pela consagração total a Deus e sonhou desde então com um trabalho missionário na Índia, tendo se naturalizado indiana para facilitar o melhor desempenho de suas tarefas. No dia 10 de setembro de 1946, marcado em sua história como o « dia da inspiração », recebe uma claríssima iluminação interior: dedicar a sua vida aos mais pobres dos pobres. Após longa e dolorosa meditação, pergunta-se o que poderia, concretamente fazer por estes infelizes? Desde então, conjulgando humildade e alegria com simplicidade, fervor e persistência, lutou incansavelmente para fundar sua própria congregação e aproximar-se daquilo que considerou sua missão: a dedicação aos mais pobres dos pobres, o que fez principalmente através do lar infantil Sishi Bavan (Casa da Esperança) e de seu famoso « Lar para Moribundos », em Kalighat. Prêmio Nobel da Paz em 1979, Madre Teresa morreu em 1997, foi beatificada em 2002, em processo que logrou um tempo récorde na história do Vaticano.
Estas duas mulheres, parecem ter superado o antagonismo que obriga a escolher entre a dureza do real e o encantamento do ideal. Boris Cyrulnik afirma que o real desdiz o êxtase: O amor paixão tem de arder no ideal, na emoção caída do céu, no indício despertado pelo outro. É preciso que o amor paixão seja passivo, porque qualquer ação introduziria o trabalho e o real desencantador… o real e suas leis tornam-se perseguidores, impedem o êxtase[19] Como tornar possível a convivência entre real e ideal, ação e devoção, ativo e passivo, vida e morte? Este parece ser o desafio.
O sentimento amoroso é universal, mas a história do amor é particular e se atualiza através de vinculações que, por sua vez, são determinadas por pressões sócio-culturais. É a domesticação da vida amorosa pela civilização que vai tecer o elo da vinculação e, ao mesmo tempo, legislando sobre a natureza dos vínculos, destrói o ímpeto, elã vital que sustenta a ação e impede a acomodação imposta pelo inexorável retorno ao inanimado. Este é o desafio, utilizar a potência do amor como sentimento universal, para extrair dele sua força de transformação, consentir no vínculo sem desvalorizar a incandescência e ainda, como se não fosse pouco, não deixar enlouquecer o amor, fazendo dele simultaneamente submetimento e possibilidade de escape ao enquadramento.
Saber fazer do real, da ação e da necessidade de transformação do real, um ideal amoroso a ser perseguido como aquele primeiro objeto perdido no universo de nossos sentidos. Eis o que nos ensinam as vidas destas duas mulheres, profetas do amor, artífices da resistência, da indignação e da paciência conjugadas na luta pela dignidade da vida humana em toda a sua diversidade cultural. Se pudermos aprender alguma coisa com elas, estaremos mais próximos deste ideal.
Obrigada a todos.
[1] Prado, Adélia, Poesia reunida, ARX, S. Paulo, 1991
[2] Morin, E. Amor, poesia e Sabedoria. Editora Bertrand Brasil, 1998, Rio de Janeiro, p.15
[3] Id. Ibid p.17
[4] ‘Josaphat, Carlos As santas Doutoras:espiritualidade e emancipação da Mulher , Paulinas, S. Paulo, 1998
[5] Bougnoux, Daniel (direction) Colloque de Cerisy: La sugestion, l‘ypnose, influense, transe. Collection Les empêcheurs de penser en rond.
[6] Nome religioso adotado por Edith Stein
[7] Stinissen, Wilfried A Noite escura segundo São João da Cruz, Edições Loyola, S. Paulo, 2001, p.60
[8] Id. Ibid. p.62
[9] Id. Ibid p.62/63
[10] Id. Ibid. p.27
[11] Id. Ibid.
[12] Id. Ibid. p.28
[13] Gorgulho, Gilberto da Silva Storniolo, Ivo, Anderson, Ana Flora, Bíblia de Jerusalém, Ed.Paulinas, S. Paulo,1989, p.1331
[14] Id. Ibid.
[15] Ver também sobre este assunto Nathan,Tobie, L‘ Influence qui guérit Editions Odile Jacob
[16] Ver também sobre este assunto Stengers, Isabelle ( direction) Importance de l‘hypnose, collection les empêcheurs de penser en ronde.
[17] Courcelles, Dominique ( direction) Les Cahiers de L‘Herne, nº 75, Stigmates
[18] Id. Ibid. p.30/1
[19] Cyrulnik, Boris, Sob o Signo do Afeto, Instituto Piaget, Lisboa, 1989, p. 165