Maio de 2020
Trabalho:
Democratizar, Desmercadorizar, Remediar
Julie Battilana
Harvard
Dominique Méda
Paris Dauphine
Isabelle Ferreras
Louvain
Humanos que trabalham são muito mais do que apenas “recursos”. Essa é uma das lições centrais da crise atual. Cuidar dos doentes; entregar alimentos, medicamentos e outras necessidades; recolher nosso lixo; repôr as prateleiras e cuidar dos registros de nossos armazéns – as pessoas que mantiveram a vida em movimento durante a pandemia do COVID-19 são a prova viva de que o trabalho não pode ser reduzido a uma mera mercadoria. A saúde humana e o cuidado com os mais vulneráveis não pode ser regido somente pelas forças do mercado. Se as deixarmos somente para o mercado, corremos o risco de exacerbar as desigualdades a ponto de privar os menos favorecidos e as menos favorecidas de sua própria vida. Como evitar essa situação inaceitável? Envolvendo empregados e empregadas em decisões relacionadas à sua vida e seu futuro no local de trabalho – democratizando empresas. Desmercadorizando o trabalho – por meio da garantia coletiva de emprego útil a todos e todas. Ao encararmos os riscos monstruosos de um colapso causado pela pandemia e de um colapso ambiental, realizar essas mudanças estratégicas nos permitiria garantir a dignidade de todos os cidadãos e todas as cidadãs, ao mesmo tempo em que dirigimos a força e os esforços coletivos de que precisamos para preservar nossa vida conjunta neste planeta.
Por que democratizar? Todas as manhãs, homens e mulheres se levantam para servir àqueles e àquelas entre nós que podem se manter em quarentena. São nossos guardas na escuridão. A dignidade de seus empregos não precisa de outra explicação que não aquele termo eloquentemente simples: “trabalhador e trabalhadora essencial”. Esse termo também revela um fato central, que o capitalismo sempre buscou tornar invisível através de outro termo, “recurso humano”. Seres humanos não são um recurso entre outros. Sem pessoas que invistam seu trabalho, não há qualquer produção, não há qualquer serviço e não há qualquer comércio.
Todas as manhãs homens e mulheres em quarentena se levantam em suas casas para cumprir à distância as tarefas das organizações para as quais trabalham. Essas pessoas trabalham até à noite. Para aqueles que acreditam que não se pode confiar que empregados e empregadas realizem suas atividades sem supervisão, que trabalhadores e trabalhadoras precisam de vigilância e disciplina externa, esses homens e mulheres estão provando o contrário. Estão demonstrando, dia e noite, que trabalhadores e trabalhadoras não são uma “parte interessada” como outra qualquer: essas pessoas são a chave do sucesso de seus empregadores. Eles são o coração das empresas e, ainda assim, majoritariamente excluídos e excluídas da participação no gerenciamento de seu local de trabalho – direito esse monopolizado por investidores de capital.
À questão sobre como as empresas e como a sociedade como um todo podem reconhecer as contribuições dessas empregadas e desses empregados em tempos de crise, a resposta é: democracia. Certamente, temos de fechar o imenso abismo na desigualdade de renda e aumentar o piso de salários, mas só isso não é suficiente. Após duas Guerras Mundiais, a contribuição incontornável das mulheres para a sociedade as ajudou a ganhar direito ao voto. Analogamente, é hora de emancipar as trabalhadoras e os trabalhadores.
Nos espaços de trabalho na Europa, órgãos representantes das investidoras e dos investidores de trabalho existem desde o final da Segunda Guerra Mundial – são instituições conhecidas como Conselhos de trabalho. No entanto, esses espaços de representação possuem, no melhor dos casos, uma voz tênue dentro dos governos e das empresas, além de serem subordinados a escolhas das equipes gerenciais e executivas designadas pelos acionistas. Eles não foram capazes de frear ou limitar o impulso de acumulação egoísta do capital, cada vez mais poderoso em sua destruição de nosso meio ambiente. Esses órgãos deveriam agora ter os mesmos direitos que aqueles possuídos pelas direções. As gerências das firmas, isto é, as administrações executivas, deveriam se ver obrigadas a obter um duplo apoio para suas decisões, o dos Conselhos de trabalho tanto quanto o dos acionistas. Na Alemanha, na Holanda e na Escandinávia, diferentes formas de ‘co-determinação’ (Mitbestimmung), surgidas progressivamente após a Segunda Guerra Mundial, foram uma etapa crucial em direção à garantia de voz para as trabalhadoras e os trabalhadores, mas ainda foram insuficientes para criar uma verdadeira cidadania interna às empresas. Mesmo nos Estados Unidos, onde a organização dos trabalhadores e os direitos sindicais foram suprimidos, atualmente ocorre uma crescente demanda para que pessoas que investem seu trabalho tenham o direito de eleger representantes dentro das direções de empresas por meio de maiorias qualificadas. Questões como a escolha de um CEO, a decisão de estratégias globais e a distribuição dos lucros são muito importantes para serem deixadas apenas aos acionistas. Um investimento pessoal de trabalho, isto é, da mente e do corpo de uma pessoa, de sua saúde – de sua vida, afinal – deve vir acompanhado do direito coletivo de validar ou vetar aquelas decisões.
Por que desmercadorizar? A crise também mostra que o trabalho não deve ser tratado como uma mercadoria, que não se pode deixar somente a cargo dos mercados escolhas que afetam tão profundamente nossas comunidades. Durante anos, empregos e mantimentos no setor da saúde foram submetidos ao princípio do lucro. Hoje a pandemia está revelando em que medida esse princípio nos tornou cegos. Certas necessidades estratégicas e coletivas devem simplesmente se tornar imunes a essas considerações. A crescente contagem de corpos ao redor do globo é um lembrete terrível de que certas coisas nunca devem ser tratadas como mercadorias. Aqueles que continuam argumentando em sentido contrário nos colocam em perigo graças à sua perigosa ideologia. Lucratividade é uma medida intolerável quando se trata de nossa saúde e de nossa vida neste planeta.
Desmercadorizar o trabalho significa preservar certos setores das leis do assim chamado “livre-mercado”. Significa também assegurar que todas as pessoas tenham acesso ao trabalho e à dignidade que este trás. Uma forma de fazer isso é criar uma ‘Garantia de emprego’. O artigo 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos nos lembra que todas e todos têm direito ao trabalho. Uma Garantia de emprego não apenas ofereceria a cada cidadã e cidadão acesso a um trabalho que lhe permitisse viver com dignidade. Ela também proveria um impulso crucial à nossa capacidade de responder aos muitos e urgentes desafios sociais e ambientais que encaramos atualmente. Ocupação garantida poderia permitir que governos, trabalhando através de comunidades locais, garantissem trabalho digno e ao mesmo tempo contribuíssem com o imenso esforço de lutar contra o colapso ambiental. Ao redor do globo, enquanto dispara o desemprego, programas de garantia de emprego podem desempenhar um papel crucial ao assegurar a estabilidade social, econômica e ambiental de nossas sociedades democráticas.
Remediação ambiental. Nós não devemos reagir agora com a mesma inocência de 2008, quando respondemos à crise econômica com um resgate incondicional que inchou a dívida pública sem demandar nada em troca. Se nossos governos intervierem para salvar negócios na crise atual, então esses negócios deverão intervir do mesmo modo e satisfazer as condições gerais da democracia. Em nome das sociedades democráticas às quais eles servem e que os constituem, em nome de sua responsabilidade em assegurar nossa sobrevivência neste planeta, nossos governos devem tornar seus pacotes de ajuda às empresas condicionados a certas mudanças nas estratégias dessas firmas. Além de se moldar a padrões ambientais rigorosos, deve-se exigir das firmas que preencham certas condições de governança democrática interna. Uma transição bem-sucedida da destruição ambiental para a recuperação e regeneração ambientais será melhor conduzida por empresas governadas democraticamente, onde, no momento das decisões estratégicas, a voz daquelas e daqueles que investem seu trabalho possua o mesmo peso que a daqueles que investem seu capital. Nós tivemos tempo mais que suficiente para observar o que acontece no sistema atual quando trabalho, o planeta e os lucros do capital são colocados na balança: trabalho e o planeta sempre perdem. Graças a uma pesquisa do Departamento de Engenharia da Universidade de Cambridge (Cullen, Allwood, and Borgstein, Envir. Sci. & Tech., 2011, 45, 1711-1718) sabemos que “mudanças factíveis no desenho de processos produtivos” poderiam reduzir o consumo global de energia em 73%, mas… essas mudanças vão na direção de mais utilização de mão-de-obra e demandam escolhas que são frequentemente custosas no curto prazo. Enquanto empresas forem geridas em função da busca por maximizar o lucro dos investidores de capital e em um mundo onde energia é barata, por que fazer essas mudanças? No entanto, certos negócios de mentalidade social, ou geridos como cooperativas – negócios que buscam objetivos híbridos, que levam em consideração aspectos financeiros, sociais e ambientais, que desenvolvem governança interna democrática – já mostraram o potencial desse impacto positivo.
Confira aqui a lista completa de todos os que assinaram o manifesto
https://drive.google.com/file/d/1Fte5UbA-tDDBq5sBsFNYdr-13S_n63Us/view
Não nos enganemos mais: deixados por contra própria, a maioria dos investidores de capital não vai se preocupar com a dignidade das investidoras e dos investidores de trabalho; tampouco irão liderar a luta contra a catástrofe ambiental. Mas outra opção está disponível: democratizar empresas, desmercadorizar o trabalho, parar de tratar seres humanos como recursos, de modo que possamos, juntos, focar em sustentar a vida neste planeta.
Artigo na Folha de São Paulo:
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/folha-publica-manifesto-internacional-em-defesa-do-trabalho.shtml?origin=folha