Narradores do sensÌvel; Claude LÈvi-Strauss e Merleau-Ponty

E assim se passaram 100 anos.

Edgard de Assis Carvalho, professor de titular de Antropologia, PUCSP.

MarÁo de 2008.

 

O ano de 1908 foi de convergÍncias e sincronicidades. Nasceram Claude LÈvi-Strauss e Maurice Merleau-Ponty. Simone de Beauvoir tambÈm veio ao mundo nessa data. Isso na FranÁa. Merleau-Ponty partiu em 1962, Simone, o Castor como era tratada na intimidade, em 1986, seis anos apÛs a morte de Jean-Paul Sartre.† Aqui no Brasil, deixava a convivÍncia dos vivos o nosso Machado de Assis. Aos 100 anos, LÈvi-Strauss permanece na ativa, desafiando pesquisadores, comentadores, crÌticos.† Por coincidÍncia ou n„o, estamos diante de quatro pensadores fulgurantes, cujas obras ter„o muito a dizer para a nossa e as geraÁıes futuras desse sÈculo 21 globalizado, †tir‚nico, intolerante, lÌq¸ido e, simultaneamente, esperanÁoso e civilizatÛrio.

Centen·rios sempre provocam comemoraÁıes, exposiÁıes, colÛquios como esse Narradores do sensÌvel voltado para LÈvi-Strauss e Merleau-Ponty. O que h· de comum entre os dois? Obstinadamente apaixonados pela liberdade, ambos ultrapassam fronteiras disciplinares, desfazem barreiras entre ciÍncias e artes.† Universalistas, s„o autores de uma obra multidimensional que nos faz meditar sobre os percalÁos da condiÁ„o humana em sua aventura na Terra.

Fazer Antropologia, diz Merleau-Ponty, exige um longo processo de transformaÁ„o de si mesmo, para que o contato com o outro n„o seja cercado de exotismos e relativismos complacentes. AlÈm disso,† o antropÛlogo deve entender que n„o È um objeto particular o que define sua especialidade, mas uma maneira de pensar que combina universal e particular, singular e plural.

Desde 1949, LÈvi-Strauss passou a fustigar a fronteira entre natureza e a cultura, fato inÈdito para uma Antropologia que se gabava de harmonias funcionalistas e neo-evolucionismos classificatÛrios. Claro que a ling¸Ìstica È fundamental em suas idÈias,† claro tambÈm que, apesar de detestar viagens, sua vinda aos tristes trÛpicos, entre 1935 e 1937, como integrante da miss„o francesa, fornece pistas para o entendimento e decifraÁ„o da relaÁ„o vida e idÈias.

Muitos anos mais tarde, em 1994 e 1996, com a discriÁ„o que lhe È peculiar, ao falar das saudades† que sente do Brasil e, em especial, da cidade de S„o Paulo, s„o as imagens fotogr·ficas que se superpıem ‡ narrativa escrita. O que elas transmitem, afirma LÈvi-Strauss, È a impress„o de um vazio, de uma falta. Ou seja, por mais tÈcnicas que sejam, as fotografias n„o captam o fluxo da vida. Paralisam o tempo, congelam o acontecimento. Redescobri-las implica exercitar a sensibilidade, excitar a mente, perceber a instabilidade e a descontinuidade da histÛria.

Os processos histÛricos, porÈm, sÛ adquirem inteligibilidade por meio do conceito de estrutura. Resta saber como os homens percebem e vivem o mundo dos acontecimentos. N„o se d„o conta deles. H· algo recalcado, recalcitrante, inerte, inconsciente, situado nas profundezas da alma que impede que isso seja feito. A estrutura reorganiza a ordem vivida, È propriedade do real que passa a ser visto de maneira mais elegante e fina. Tem duas faces, como o deus Jano do pante„o romano, representado por dois rostos que se opıem, um que olha para frente, outro para tr·s.

Como o pensamento sempre pensa bem, a sensibilidade entra em aÁ„o, ‡s turras com os mandos e desmandos da raz„o. Raz„o e sensibilidade s„o faces da mesma moeda, como os dois rostos de Jano.† Por mais que se queira fragmentar a existÍncia, ela resiste, e com muita tenacidade e perseveranÁa. Dilacerada no deserto do real,† busca rejuntar seus pedaÁos, totalizar, religar, propor novos sentidos aos desatinos humanos.

As mitologias s„o exemplo disso. Linguagens da imaginaÁ„o, apropriam-se das poeiras de estrelas deixadas pelo rastro do tempo, solucionam contradiÁıes, invertem a relaÁ„o natureza-cultura e a seq¸Íncia presente-passado-futuro.† Por isso, devem ser percebidas como m˙sicas que exigem atenÁ„o dedicada do ouvinte. M˙sica e linguagem pıem nossos sentidos constantemente ‡ prova. Os mitos, afirma LÈvi-Strauss, sempre querem dizer a mesma coisa. N„o s„o especÌficos de nenhuma sociedade, dessa ou daquela populaÁ„o. S„o respostas irÙnicas ou desencantadas para problemas intemporais. Constituem, portanto, patrimÙnio universal da cultura.

Injustamente acusado de negligenciar a histÛria, de n„o dar a mÌnima para a luta dos homens, de pregar uma nostalgia do absoluto, Claude LÈvi-Strauss nos faz ver o mundo de outra forma. Sua paix„o pelo entendimento È de tal ordem que nos leva a perceber que somos meros gr„os de areia, infinitamente pequenos, filhos do cosmo e, como tal, impermanentes e provisÛrios. ìPermitam, portanto, meus caros colegas, depois de haver prestado homenagem aos mestres da antropologia no inÌcio dessa aula, que minhas ˙ltimas palavras sejam voltadas para os selvagens, cuja obscura tenacidade nos propicia, ainda, a oportunidade de perceber os fatos humanos em suas verdadeiras dimensıesî. Esse fragmento da aula inaugural do CollËge de France, proferida em 5 de janeiro de 1960, È simultaneamente parte e todo de sua vastÌssima obra. … dessa tenacidade que precisamos urgentemente!†