Breviário da vida e da morte – por Edgard de Assis Carvalho

Breviário da vida e da morte por Edgard de Assis Carvalho – Núcleo de estudos da complexidade, COMPLEXUS

Para Aldir Blanc, morto pela Covid19, e Flávio Migliaccio, que desistiu de viver, quando constatou que a humanidade não deu certo. [Em 4/5/2020].

Vírus-zumbi que assola os quatro cantos da Terra, a pandemia da Covid-19 exige uma reflexão complexa das Humanidades, o que aliás permanece incipiente no Brasil. Existem trágicas quantificações da expansão da contaminação, reiteradas recomendações de isolamento e confinamento, nem sempre cumpridas, benevolentes ações de ajuda mútua. O que se constata, porém, é a inépcia e incapacidade do governo federal de gerir essa geopolítica do caos e do medo.

Com um fanático narcisista no poder, portador de visíveis sintomas de psicopatia, de desconexão com a realidade, que conta com a fidelidade fanática de seu clã, além de apoiadores insensatos, filofascistas seriais, gurus fundamentalistas, militares de caserna, o Brasil caminha na contramão de estados democráticos contemporâneos, empenhados em conter a disseminação desse flagelo planetário por meio de ações globais de cooperação, contra as quais o país sempre se perfila, ao lado dos Estados Unidos e mais doze países.Regressão ética, ausência de solidariedade e fraternização, de preocupação com o outro são termos insuficientes para definir tais atitudes. Existe um objetivo explícito de desdizer organismos internacionais como OMS, ONU, anular recomendações sanitárias nacionais e internacionais, minimizar os efeitos da disseminação, acabar com quarentenas e confinamentos, exigir que todos voltem ao trabalho.

Exceção deve ser creditada às agências de pesquisa federais, estaduais, municipais que, apesar da exiguidade de verbas e cortes insensatos de programas de pesquisa, se empenham em decifrar a Covid-19, identificar possibilidades de combate, ampliar leitos e UTIs para abrigar contaminados, testar medicamentos, colaborar para a criação de uma vacina. Se os vírus que, cotidianamente, invadem computadores e plataformas digitais continuam a ser combatidos, e com certo sucesso, esse vírus-zumbi que invadiu corpos e mentes desafia a todo tempo os múltiplos sentidos da morte e da vida, pondo à prova a impermanência, a arrogância, a desigualdade, o egoísmo, a solidariedade.

Edgard de Assis Carvalho A filosofia cumpre importante papel nesse processo comandado por Tânatos. Cada um a seu modo, os filósofos tentam entendê-lo, expondo suas percepções sobre o caráter multidimensional da pandemia.  Em A filosofia da pandemia, por exemplo, publicado na Ilustríssima da Folha de São Paulo, de 12 de abril último, encontram-se expostas assertivas, conjecturas, utopias, predições de vários pensadores contemporâneos. Excelente trabalho da jornalista Úrsula Passos, ilustrado por Camila Rocha, que serve de termômetro de uma filosofia cindida entre o ceticismo, a descrença, a irracionalidade, a imotivação.

Sem pretensão de analisar o conjunto, pode-se destacar: o ‘socialismo de emergência’ de Slavoj Zizek, o retorno do ‘estado de exceção’ do Homo Sacer de Giorgio Agamben, a dissipação da razão de Alan Badiou, a tentativa de entender a soberania num contexto de identidades sexuais e raciais desarticuladas, de Paul Preciado, a pujança do capitalismo pós-pandemia de Byung-Chul Han, para quem a China venderá seu ethos para o resto do mundo.

Um outro lado dos saberes, porém, empenha-se em trazer à reflexão fontes que podem ampliar a percepção do ser-aí, desse mundo pandêmico. Definido por Heidegger em Ser e Tempo[1],  o cerne do ser-aí se expressa na cotidianidade do ser humano, sempre às voltas com os dilemas da angústia e da morte. Para ser autêntico, esse ser-no-mundo sempre pergunta, questiona. Essa é a essência do ato de conhecer, que denega o dualismo natureza e intelecto, corpo e mente, essência e existência, razão e desrazão.

Esse macro-objetivo é a marca dos pensadores aqui elencados. São filósofos, psicanalistas, romancistas, poetas – vivos ou mortos – que, no transcorrer de suas vidas, problematizam os múltiplos sentidos da iminência da morte, da preservação da vida, do desassossego da psique, da solitude do ser. Reler os fragmentos de seus ditos e escritos se impõe como algo fundamental para esses tempos viróticos e sombrios que nos assolam e nos deixam atônitos, estarrecidos, perplexos diante de um devir incerto, indeterminado, obscuro, indeliberado. Este Breviário da vida e da morte põe em questão a pretensa onipotência do homem em dominar o mundo, a vida, a Terra, o cosmo e ignorar a existência do outro.  Afinal, Montaigne em seus Ensaios já afirmava, “fazer filosofia é aprender a morrer”.

A crise da Covid-19 mostra que a mundialização é uma interdependência sem solidariedade. O movimento da globalização produziu a unificação tecnoeconômica do planeta, mas não se empenhou em fazer progredir a compreensão entre os povos. Perigos planetários – ecologia, armas nucleares, desregulação da economia – criaram uma comunidade de destino da qual os humanos não tomaram consciência. O vírus esclarece hoje de maneira imediata e trágica essa comunidade de destino. Será que tomaremos consciência disso? Como não existem solidariedade internacional e organismos comuns capazes de tomar medidas globais, o que se constata é o fechamento das nações nelas mesmas. O Novo Coronavírus nos diz enfaticamente que a humanidade como um todo deve buscar uma nova via que abandonaria a doutrina liberal em prol de um New Deal político, social, ecológico. A nova via corrigiria os efeitos da mundialização criando zonas desmundializadas que salvaguardariam as autonomias fundamentais.

Abril é o mais cruel dos meses, criando

Lilases na terra morta, mesclando

Memória e desejo, atiçando

Raízes tardas com chuva de primavera.

Cidade irreal,

Sob a névoa marrom de uma aurora de inverno

Multidões afluíram à ponte de Londres, tantos,

Não sabia que a morte desfizera tantos.

Suspiros, curtos e infrequentes, eram soltos,

E cada qual fitava à frente dos seus pés.

A peste, é preciso que se diga, tirara a todos o poder do amor e até mesmo da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só havia instantes. É claro que nada disso era absoluto. Pois se é verdade que todos os separados chegaram a esse estado, é justo acrescentar que não chegaram todos ao mesmo tempo e que, da mesma forma, uma vez instalados nessa nova atitude, lampejos, retrocessos, bruscos estados de lucidez levaram os doentes a uma sensibilidade mais nova e mais dolorosa. Eram necessários para isso momentos de distração, em que eles formavam algum projeto que implicava o fim da peste.

Terrorismo e vírus encontram-se em todos os lugares. Há uma perfusão mundial do terrorismo (e do vírus) como fantasmas que acompanham a totalidade do sistema de dominação, sempre pronto a se revelar como agente duplo. Não existe mais linha de demarcação que permita circunscrevê-lo, encontra-se no próprio cerne da cultura que o combate. A ruptura visível (e o ódio) que, no plano mundial, expõe explorados e subdesenvolvidos a exploradores e desenvolvidos cimenta secretamente a fratura interna do próprio sistema dominante. Esse sistema pode enfrentar qualquer organismo visível mas contra o terrorismo de estrutura viral não tem poder nenhum. Parece que ninguém compreendeu que o Bem e o Mal crescem simultaneamente em poder e movimento.

Impossível compor um poema a essa altura de

evolução da humanidade.

Impossível escrever um poema – uma linha que seja –

de verdadeira poesia.

Um sábio declarou que ainda falta

muito para atingirmos um nível razoável de

cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.

Os homens não melhoram

e matam-se como percevejos.

Os percevejos heroicos renascem.

Inabitável o mundo é cada vez mais habitado.

E se os olhos reaprendessem a chorar seria como

um segundo dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema).

O confinamento é uma proteção psíquica necessária à sobrevivência e, ao mesmo tempo, constitui uma evidente agressão psíquica. Nos dias atuais é preciso respeitar o ‘distanciamento social’ para evitar dezenas de milhares de mortes. Existem maneiras de enfrentá-lo. Os indivíduos vão redescobrir ou inventar rituais familiares, dedicarem-se a projetos pessoais, tocar um instrumento musical, ler, escrever, manter contato com familiares e amigos próximos.  Experiências demonstram que os animais, assim como os humanos, quando são privados da interação com seu ambiente, se descompensam de maneira ansiosa, angustiante, alucinatória e até mesmo delirante. O isolamento sensorial provoca alteração nas funções cognitivas. O diagnóstico por imagem do cérebro demonstra que o isolamento provoca atrofias dos dois lóbulos pré-frontais, sede da antecipação, do sistema límbico, sede da memória e das emoções, mas também uma atrofia da amigdala cerebelosa, sentinela de insuportáveis emoções.

Quando Deus voltou para ver como os homens estavam vivendo desde que foram expostos a doenças, constatou que a vida deles estava ainda pior. Aqueles que forçavam outros a trabalhar para eles também os forçavam a cuidar deles quando caíam doentes, mas eles próprios, por sua vez, nunca cuidavam dos doentes. Então os homens construíram casas grandes, onde os doentes padeciam e morriam sem a compaixão de ninguém. Ademais, a maioria das doenças foi considerada contagiosa. Se é assim, que se arranjem com seus próprios sofrimentos, disse Deus. E abandonou os homens. Por fim, os próprios homens começaram a entender que, diante da constante ameaça da morte, a única atitude razoável consiste em viver em harmonia cada hora, cada mês, cada minuto que são concedidos a cada um de nós.  As doenças não devem ser motivo de separação. Ao contrário devem motivar a união e o amor entre todos.

Malgrado nossa relativa fraqueza física, nossa capacidade de criar e manter laços sociais sólidos permitiu à espécie humana dominar todos seus grandes concorrentes biológicos. Gracas à socialização, aprendemos uns com os outros. Quando nossos próximos adoecem, nossa tendência é abraçá-los, reconfortá-los física e emocionalmente. Com o Novo Coronavírus, nos conscientizamos do problema psicológico, social e político que o isolamento social provoca. As limitações do transporte mundial, o fechamento de fronteiras, a proibição de agrupamentos, o isolamento de bairros e, sobretudo, o afastamento de parentes e amigos encorajam comportamentos que só fazem aumentar a solidão. Na realidade, sem ajuda mútua e cooperação – entre vizinhos, comunidades, nações – as epidemias e pandemias podem infectar e matar ainda mais.

Então quando o trabalho terminou e os garotos foram trocar de roupa na cabana preparando-se para jantar, ele tirou os óculos, galgou o trampolim mais alto e, durante meia hora, se concentrou em executar os saltos mais difíceis de seu repertório. Ao sair da água pela última vez e repor os óculos, não tinha ainda tirado da cabeça o que acontecera – a velocidade com que tudo havia acontecido e a ideia de que era dele a responsabilidade pelo que havia acontecido. Ou a de que o surto de pólio no pátio de recreio tinha origem nele. Ouviu então um uivo altíssimo. Era o uivo da vizinha aterrorizada com o risco de que seu filho contraísse pólio e morresse. Mas ela não apenas ouvira o uivo – ele próprio uivara. Mais tarde, os carros começaram a chegar para levar os meninos de volta para casa. Mais de cem dos duzentos e cinquenta hóspedes da colônia haviam sido levados pelos pais. No dia seguinte, outros dois meninos foram diagnosticados com pólio, e a colônia de férias imediatamente fechou as portas.

Esta crise sanitária é sinal de uma crise civilizatória. Vivemos o fim de um paradigma, e isso é mais evidente agora, com a presença da morte a nos rondar. A epidemia atual tem uma expressão simbólica nesse sentido. Mas, sejamos claros, a epidemia é real. Essa possibilidade de perigo é simplesmente a possibilidade de morrer. E, apesar da presença da morte, acho importante que haja manifestações lúdicas, emocionais, por meio de elementos simbólicos. Vivemos agora o ativismo em redes. E são as redes sociais, os fóruns virtuais, os blogs que nos conectam com a alteridade. É lá que as pessoas, durante o confinamento, estão se comunicando, o que é bem paradoxal, eu diria. Para mim, há uma volta de algo cultural e espiritual, uma espécie de ideal comunitário que está assumindo mais força na contemporaneidade.

Certa vez havia num brejo um rã que gritava para todos os animais: “Eu sou médica, especialista em todos os tipos de remédios!”. Ao ouvi-la, disse uma raposa: “Se você, que manquitola, não cura sua própria deficiência, como é que vai salvar os outros?”.

Na escola psicanalítica podemos arriscar a afirmação de que no fundo ninguém acredita na própria morte; ou, o que vem a significar o mesmo, que no inconsciente cada um de nós está convencido de sua imortalidade. Via de regra, enfatizamos a natureza casual da morte, um acidente, uma doença, infecção ou idade avançada, e desse modo traímos o nosso empenho em vê-la como algo fortuito, em vez de necessário. Um grande número de mortes nos parece terrível ao extremo. Essa postural cultural-convencional diante da morte é complementada pelo total colapso que sofremos quando morre alguém que nos é próximo. Enterramos com ele todas as nossas esperanças, ambições, alegrias, ficamos inconsoláveis e nos recusamos a substituir aquele que perdemos. Então é inevitável que busquemos no mundo da ficção, na literatura, no teatro, substituto para as perdas da vida. Lá encontramos pessoas que sabem morrer, e que conseguem até mesmo matar uma outra. E apenas lá se verifica a condição sob a qual poderíamos nos reconciliar com a morte; de que por trás de todas as vicissitudes da vida nos restasse ainda uma vida intacta. No reino da ficção encontramos a pluralidade de vidas de que temos necessidade. Morremos na identificação com um herói, mas sobrevivemos a ele e já estamos prontos a morrer uma segunda vez com outro, igualmente incólumes.

Quando eu atravessar os rios impassíveis

Senti-me libertar dos meus rebocadores.

Cruéis peles-vermelhas com uivos terríveis

Os espetavam nus em portas multicores.

Eu era indiferente à carga que trazia.

Gente, trigo flamengo ou algodão inglês.

Monta a tripulação e finda a algaravia,

Os rios para mim se abriram de uma vez.

Imerso no furor do marulho oceânico,

No inverno, eu, surdo como um cérebro infantil,

Deslizava, enquanto as Penínsulas em pânico

Viam turbilhonar marés de verde e azul.

Mesmo que não se considere a morte como uma passagem, uma visão salutar dela nos leva a compreender, em nosso nível mais profundo, que a morte é inevitável, que sua hora é imprevisível. Levar em conta tal evidência, permite dar a cada instante que passa um valor inestimável, mesmo que esse instante consista em não fazer nada ou simplesmente olhar um pássaro voar sobre uma árvore em flor. Essa tomada de consciência não é nada mórbida: permite que vivamos melhor e evita que desperdicemos o tempo com coisas desnecessárias. Sejamos inteligentes o suficiente para reconhecer o valor inestimável da vida e decidir o melhor a fazer diante dele, tomando como base o nosso bem e o dos outros. Sêneca afirmava: “Não é que tenhamos pouco tempo, mas sim que perdemos tempo demais”. Dissipemos a ilusão que consiste em acreditar que temos “uma vida inteira diante de nós”. Não deixemos de lado a compreensão inelutável da morte.

Sequer um contato imediato de

um planeta distante, um milagre

de lágrimas no orvalho do sonho,

crianças dançando no teatro de

velas, aquarelas desbotadas na

paisagem urbana.

Nunca mais a semana com dias após outros.

Onde anda você e seu corpo de

carnaval, seu jeito de fotografar a lua

com os lábios, seu sol brilhante na

rua de paralelepípedos?

É

Tudo ganhou novo brilho ou perdeu

o delírio de estar à deriva.

Vivamos a vida, antes que

A devore o Vírus.

É curioso observar que a palavra ‘viral’ já foi utilizada várias vezes ao longo do tempo. Reações virais fazem parte de nossa realidade política e econômica hiperconectada. A aceleração de nossa civilização chegou a um estado viral e agora essa metáfora nos perturba, pois ela se inscreve no real, é uma ameaça interna e também externa. Talvez não tenhamos defesas imunitárias suficientes e o perigo atinge a todos. Muito têm o vírus, mesmo sem sabê-lo. Alguns sobreviverão, outros não. Sempre me preocupo com a incapacidade contemporânea de viver só. Perdemos o verdadeiro sentido da palavra, da sensação, da partilha, da ternura, do dever e da preocupação com o outro. Não nos damos conta de que a morte está em nós, na apoptose, que é um processo de morte e de regeneração celular. A arte e a literatura se ocuparam com esses temas. Penso em Marcel Proust e Georges Bataille por exemplo. Me considero uma pessimista incansável. Sobrevivi a três guerras: a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria, a experiência do exílio. Me defronto agora com essa guerra viral. Talvez por isso, eu me arrisque a falar de sobrevivência. Estamos prontos para uma arte de viver, que não terá nada de trágico, mas que será complexa e exigente.

Vocês que vivem seguros

Em suas cálidas casas.

Vocês que, voltando à noite,

Encontram comida quente e rostos amigos,

Pensem bem se isto é um homem

Que trabalha no meio do barro,

Que não conhece paz,

Que luta por um pedaço de pão

Que morre por um sim ou por um não.

Pensem que isto aconteceu:

Eu lhes mando estas palavras,

Gravem-nas em seus corações

Estando em casa, andando na rua,

Ao deitar, ao levantar;

Repitam-nas a seus filhos.

Estamos todos mergulhados numa situação que não foi escolhida por nós. Privados das saídas, das distrações habituais, surge um nível de angústia e estresse sem precedentes. Todos se preocupam com o futuro, com que acontecerá com seus próximos. Torna-se necessário não sucumbir no catastrofismo. Confinados, temos a nosso dispor telefones, livros, internet. Temos de reconhecer que o coronavírus é uma batalha. Como em qualquer crise, coisas positivas e novas vão surgir, mas nossa atitude pessoal quanto à felicidade cumpre um importante papel nesse processo. Estudos mostram que espaços reduzidos de intimidade aumentam as tensões. Para se preservar é preciso inventar uma visão metafórica da situação: por exemplo, dizer que estamos todos no mesmo barco para uma longa travessia com tarefas a serem compartilhadas, para que ninguém se afogue ou se estresse demais.

Vês um féretro posto em solitária igreja?

Esse pó que descansa, e se esconde e se some,

Traz de um grande ministro o formidável nome

Que tem vivas letras de ouro e lágrimas flameja.

Lá fora uma invasão esquálida braceja,

Como um mar de miséria e luto, que tem fome

E novas praias busca e novas praias come.

Enquanto a multidão, recuando, peleja.

O gaulês que persegue, o bretão que defende

Duas mãos de um destino implacável e oculto

Vão sangrando a nação exausta que se rende.

Dentre os mortos da história, um só único vulto

Não ressurge: um Pacheco, um Castro não atende;

E a cobiça recolhe os despojos do mundo.

Para os gregos, a morte, a velhice, as epidemias e todos os males do mundo ficavam encerrados na Caixa que Pandora trouxera consigo quando veio habitar entre os seres humanos. A Caixa continha os males que Zeus desejava infligir à humanidade para se vingar do roubo do fogo praticado por Prometeu. Apesar de suas recomendações, seu irmão Epimeteu, apaixonado pela bela Pandora, abriu a Caixa. Desde então, os homens foram condenados a trabalhar, a morrer, a se unirem às mulheres, a se casarem para se reproduzir. As ressonâncias dessa narrativa mítica estão mais vivas do que se supõe nesses tempos pandêmicos, pois na Caixa de Pandora vem sendo incluídos outros males, mais insidiosos e atuais, como o recrudescimento dos autoritarismos que usam a Covid 19, o perigo iminente, para ampliar suas redes de vigilância e punição sem reação ou revolta da população. Hong Kong foi abruptamente silenciado, a China continental instala câmeras de vigilância fora e dentro das casas, em nome da segurança de todos.

Como já foi tantas vezes reiterado, é preciso ficar de cabeça fria e não aderir aos profetas da infelicidade – fundamentalistas, nacionalistas, colapsistas –  que acreditam que a mutação de um vírus pode ser o sinal anunciador do fim do mundo. É preciso também afrontar os arautos do ódio, inumanos que não se importam com a preservação da vida e conspiram nos gabinetes do poder.  “Acredito piamente que a ciência e a paz triunfarão sobre a ignorância e a guerra”, afirmou Louis Pasteur em Paris, em 1892, na Sorbonne. Que essas palavras ecoem pela Humanidade inteira, e que não nos esqueçamos jamais do enunciado de Heráclito – “Viver de morte, morrer de vida”.

Faz uma semana que o tempo está péssimo, e isso me agrada. Pois desde que estou aqui, não houve um único dia bonito que alguém não tivesse estragado ou envenenado. Se chover, nevar, fizer frio e degelar: ah! penso eu, dentro de casa não pode ser pior do que lá fora, ou vice-versa, e assim está bem. De manhã, quando o sol nasce prometendo um belo dia não hesito em exclamar: aí têm eles de novo um bem celestial que não podem arrancar um do outro. Saúde, reputação, contentamento, repouso! E quase sempre por estupidez, incompreensão e mesquinhez tudo com a melhor das intenções, dizem eles. Às vezes gostaria de pedir-lhes de joelhos para não revirarem suas entranhas com tanta fúria.

Sei que um confinamento temporário será vivido como um impedimento. Os vídeos não podem substituir a ida ao cinema, os tablets a ida à livraria. Skype e Zoom não possibilitam o contato carnal, o tim-tim das taças num brinde. A comida doméstica, mesmo excelente, não suprime o desejo de ir ao restaurante. Documentários não suprimirão a vontade de conhecer de perto as paisagens, as cidades, os museus. A redução ao indispensável desperta a sede do supérfluo. Essa epidemia nos traz um festival de incertezas. Não temos certeza da origem do vírus. Não sabemos se devemos esperar o pior ou o melhor, a uma mistura de ambos. A ciência não é um repertório de verdades absolutas e suas teorias são biodegradáveis , sob o efeito de descobertas novas. Foram os “desviantes”, de Pasteur a Einstein, passando por Darwin, que fizeram as teorias progredirem. Como a crise econômica, a pandemia abala todos os dogmas que governam a economia; como crise nacional, revela as carências de uma política que favoreceu o capital em detrimento da rentabilidade e da competitividade; como crise civilizacional nos leva a perceber as carências de solidariedade e de fraternidade e a intoxicação consumista que nossa sociedade desenvolveu. Continuamos a prever 2025 e 2050, mas somos incapazes de compreender 2020.

A situação atual do mundo se distingue pelo fato de não possuir uma estrutura de coimunidade para os membros da “sociedade mundial”; a solidariedade ainda é uma palavra extremamente vã. Hoje, como no passado, se pode aplicar ao termo a controvertida frase de Carl Schmitt, especialista em direito público: “Aquele que fala em humanidade quer enganar”.  O motivo de tal afirmação é evidente: nos dias atuais, como em tempos passados, as efetivas unidades de solidariedade são formatadas em nível familiar, tribal, nacional, imperial, e só há pouco tempo em estratégias regionais que funcionam – isso quando funcionam – de acordo com os respectivos formatos da diferença entre o semelhante e o “estrangeiro”. As alianças bem-sucedidas para a sobrevivência são, por conseguinte, particulares e, por isso, as “religiões mundiais” também não podem, de acordo com a natureza das coisas, ser mais do que meros provincialismos em larga escala. O próprio conceito de “mundo” é uma mera expressão ideológica, que promove o macroegoísmo do Ocidente e de outras grandes potências e não descreve a estrutura concreta de coimunidade de todos aqueles que se empenham na sobrevivência da cena global. Os sistemas particulares rivalizam uns com os outros, segundo uma lógica que habitualmente produz ganhos imunitários para uns e perdas imunitárias para outros. A humanidade não é um superorganismo – como apressadamente afirmam alguns teóricos da teoria dos sistemas. Até que algo de novo aconteça, ela não é nada mais do que um agregado de “organismos” hierarquizados, que jamais se integram numa unidade de nível global que seja capaz de funcionar. Toda história é uma história de combates entre sistemas imunitários.

Um homem malvado apostou com uma pessoa que iria lhe provar que o oráculo de Delfos era falso. No dia marcado, pegou um pardalzinho, encobriu-o com o manto e foi ao santuário. Em pé, diante do oráculo, perguntou-lhe se o que estava segurando nas mãos era uma coisa viva ou sem vida. Sua intenção era, caso ele dissesse “sem vida”, mostrar o pardalzinho vivo, e, caso dissesse “viva” apresentá-lo morto depois de asfixiá-lo. E o deus, ciente de sua intenção velhaca, respondeu”: “Pare com isso, meu caro! Só depende de você se o que está trazendo é vivo ou morto”.

Fontes bibliográficas

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Edgar Morin. A mundialização é uma interdependência sem solidariedade. Entrevistado por David Le Bailey e Sylvain Courage. Tradução de Edgard de Assis Carvalho. Paris: L’OBS, nº 2889,19-25 de março de 2020.

Edgar Morin.  Esta crise nos leva a questionar nosso modo de vida, nossas reais necessidades mascaradas nas alienações do cotidiano. Entrevista com Nicolas Truong. Paris: Le Monde, 20/4/2020. Publicado em Carta Maior, abril 2020. Tradução de Aluísio Schumaker.

Edmilson Felipe da Silva. No orvalho do sonho. Poema inédito. Abril 2020.

Esopo. A rã médica e a raposa. Em Fábulas completas. Tradução de Maria Celeste Dezotti; ilustrações de Eduardo Berliner; apresentação de Adriane Duarte. São Paulo: Cosac Naify, 2013. [Originalmente reunidas por Demetrio de Faleros em 325 a.C].

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Jean Baudrillard. O espírito do terrorismo. Em Margem 14. [Adrian Ribaric, Élvio Rodrigues Martins, eds.], Tradução de Mariza Perassi Bosco; revisão técnica Edgard de Assis Carvalho.  São Paulo: EDUC, dezembro de 3002. (Artigo originalmente publicado no Le Monde, em 3/11/01).

Julia Kristeva. A humanidade redescobre a solidão existencial, o senso dos limites e da mortalidade. Entrevista ao Corriere della Sera. Tradução de Henri José Legrand, 29/3/2020. Tradução brasileira de Edgard de Assis Carvalho.

Johann Wolfgang von Goethe. Os sofrimentos do jovem Werther. [1787]. Segunda parte. Tradução, notas e posfácio de Erlon José Paschoal. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

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[1] Martin Heidegger. Ser e tempo. Edição bilingue alemão-português. Tradução e organização Fausto Castilho. Campinas, SP: Editora da UNICAMP; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012.